Como é bom ser vida loka, versão gringa

Peguei meu caderninho rosa, presente que a Lu me deu no meu último dia de trabalho, e fiz uma lista de todos os lugares que gostaria de conhecer no continente europeu. Fiz simulações de voos e de trem para ter noções de valores e, de acordo com os resultados (no caso, os menores valores), defini: Bruxelas, Berlin e Amsterdã. Depois Paris, na volta, e Besançon, no fim das férias, onde voltaria ao meu curso no CLA (tive duas semanas de férias no meio do curso). Liguei pro meu pai na hora, pedi uma ajuda porque tinha viajado só com um cartão de débito e dinheiro “em espécie” e fechou rolê. Claro que na hora eu não tinha a menor dimensão do que acabara de fazer, mas na véspera da viagem estava desesperada pensando no quanto poderia dar ruim. Imaginem, uma mulher, sozinha, viajando pela Europa! Ainda não existia aquela ideia de que ok, na Europa é mais seguro, vamos zerar essa agonia. Muitos filmes se passaram pela minha cabeça – me vi sendo assaltada, furtada em meio a distração, chorando ao me perder e claro, a pior das hipóteses: sendo estuprada. Credo.

No último domingo, dia 24, comemorei um ano desse “projeto” maluco. Spoiler: correu tudo bem e a cota de perrengues foi fácil de lidar. Tenho passado por nostalgias muito doloridas com o simbolismo de “um ano depois”, vejo as fotos sentindo cisco nos olhos. Diluir a dor envolve relembrar os momentos e eternizá-los escrevendo, então vamos lá.

Alucinada é um qualificativo bem aplicável ao meu estado uma semana antes do dia 24 de abril de 2015. Tinha acabado de voltar de Madrid com roupa pra lavar, precisava entregar alguns trabalhos extensos no curso antes do recesso e comprara um coletor menstrual para não usar menstruação como desculpa para cancelar um passeio. Comprei um tênis novo, que um dia foi cinza e hoje está deveras desbotado. Reorganizei a mochila emprestada da amiga grávida (palavras dela: “meu sonho poder viajar, mas quando você chegar em Amsterdã é provável que eu esteja em trabalho de parto”), coloquei meus roteiros, confirmações de hostels e passagens dentro de uma pasta e fui, tremendo e suando frio.

O tênis, quando ainda era cinza
O tênis, quando ainda era cinza

Tinha feito um roteiro para cada país. Andando em Bruxelas, o primeiro destino, acabei caindo em locais que estavam planejados para o dia seguinte, e decidi “remanejar” os rolês. Das primeiras impressões, guardo um dos poucos incômodos de viajar sozinha – não ter alguém pra ajudar a guardar mesa quando vai ao bar, por exemplo. Coisa que pode ser resolvida fazendo amizade e pedindo pra alguém guardar sua cadeira. Teimei em acreditar que fosse possível, dado que desde sempre espero o pior das pessoas e nossa, como uma atitude bondosa surpreende. Nessas andanças belgas tive que virar uma chave e me abrir ao desconhecido sem pestanejar.

Teve o cara do supermercado, que viu minha cara de perdida, pegou meu mapa e foi caminhando comigo quase até a porta do hotel. A moça da loja de cacarecos, que perguntou se podia riscar meu mapa para indicar o caminho e ainda me levou até a porta da loja para apontar o caminho. O moço do pub do hostel, que sempre reservava minha cadeira e ainda descolou um estoque de spekulaas (a versão bolachinha) no meu último dia. O casal que conheci por um acaso no bar da Delirium e no fim das contas acabou me fazendo companhia por algumas horas.

Ir sozinha pro bar e tomar duas cervejas diferentes ao mesmo tempo? Claro que pode
Ir sozinha pro bar e tomar duas cervejas diferentes ao mesmo tempo? Claro que pode

Foi a primeira vez, em (quase) 24 anos, que senti que dava mesmo para ser sozinha, mesmo estando longe de tudo que me era familiar.

Quando cheguei em Berlin, no segundo dia, resolvi tomar uma cerveja num pub qualquer. Vocês sabem – alemães não brincam em serviço. É meio litro ou litrão. Quando um cara se ofereceu para pagar o refil, senti medo, mas ele parecia ok e só pedi uma água pra dar uma equilibrada pois nunca se sabe. Mais alguns dias por lá mostravam – era uma prática comum. É machista? Em certa medida sim, aquela velha ideia de que é o homem quem paga a conta. Mas eles não exigem nada em troca. Pagar a bebida é uma formalidade, não é um convite pra te agarrar depois. Vez ou outra terminava em um bar tomando cerveja e conversando com estranhos. Tive papos ótimos sem precisar fazer algo que não estivesse disposta depois.

Imaginem minha cara quando cheguei aí. Chorei largado.
Imaginem minha cara quando cheguei aí. Chorei largado.

Berlin foi um momento de pura introspecção, sentia necessidade de estar sozinha com os meus pensamentos e estava maravilhada demais para pensar em qualquer forma de interação. No começo foi um pouco medonho, pensei na possibilidade de iniciar uma guerra interna por passar tanto tempo comigo mesma. Imaginem a surpresa de ter um encontro tão leve. Acordar e dizer ao espelho “e hoje, para onde vamos?”. Deixar o roteiro “acontecer” por onde os pés me mandassem. Percebi que minha companhia estava longe de ser um fardo, e talvez o único empecilho fosse a independência. Visto minha capa de autossuficiência e com isso acabo repelindo pessoas sem nem me dar conta.

Selfie na paradinha para descansar as pernas em Berlin
Selfie na paradinha para descansar as pernas em Berlin

Teve sua contrapartida – uma oportunidade de ser ousada e pedir o contato da amiga-da-amiga. Assim conheci Nana. Até então sabia que ela morava em Berlin, e só. Nunca tinha trocado uma palavra com a moça e terminei encontrando uma das melhores anfitriãs possíveis. Nana me indicou um dos melhores museus  da cidade (Museu Judaico) e ainda me levou para um tour pela cidade. Foi o dia que mais andei na viagem toda, e sinceramente não sei como a sapatilha vagabunda da Primark (custou o que, 5 euros?) deu conta dos meus pés, mas valeu cada minutinho. Era dia do trabalho, 1º de maio, data marcada por festas de rua em Berlin. Atravessamos a cidade em meio a pessoas “felizes” com suas garrafas de cerveja nas mãos.

Nessa altura já me sentia muito livre e à vontade, amando essa possibilidade de poder andar pelas ruas sem sentir palpitações de ansiedade. Era prazeroso não pensar em tempo. Tinha alguma mágica em viajar que retirava qualquer pedra do caminho. Foram quase duas semanas sem sentir nada no corpo. Claro, tinham os pés doloridos, mas não houve tpm, gastrite, cólica, gripe, nada. Nenhum fator externo conseguiu me derrubar porque eu me sentia plena, feliz. Sabe quando você só consegue chorar por motivos de emoção ao ver tudo que você só conhecia por foto?

Obter isso sozinha foi uma grande vitória.

Quando desembarquei em Amsterdã, já no fim das férias, zerei toda e qualquer expectativa. O que viesse era lucro. Nessa altura já nem ligava mais para conforto – tinha vestido que àquela altura eu usava pela quarta vez, sem lavar, o hostel era bem barulhento, mas eu só estava lá para dormir e depois de um dia inteiro andando, barulho nenhum me impedia de capotar. Ignorei de vez meu roteiro, pois bastou uma voltinha para me familiarizar com a região do hostel para entender que a graça de Amsterdã estava em suas ruas, e não dentro de um museu. Não que tenha problemas com isso, rodei vários museus nos destinos anteriores e gosto muito. Mas Amsterdã carrega muitas peculiaridades em suas calçadas estreitas e os meus euros já não eram mais os mesmos de Bruxelas para pagar 17 contos e passar a tarde olhando pinturas e esculturas. Decidi investir 18 euros no de Van Gogh por motivos de ele merece.

A chegada de Caio foi muito conveniente para fechar a viagem – naquela altura não era imprescindível ter companhia, mas o fato de ter foi quase um presente. Ainda mais quando é um amigo que te entende e topa fazer turismo chapado contigo. Andávamos meio sem rumo pela cidade e, quando os pés pediam descanso, a gente entrava em algum bar/coffee shop para tomar o chope de produtividade. Coisas que aconteciam em nossas pausas: chuva em slow motion, paleta de cores surreal, tese de mestrado sobre é o tchan, teoria do Jardim Secreto, entre outros. Registros em vídeo nem foram pensados, deixamos para as memórias, uma ou outra foto, e algumas frases sem sentido algum marcadas naquele caderninho rosa que ganhei da Lu.

 

Amsterdã, sua louca
Amsterdã, sua louca

Esses quatorze dias foram definitivos, mudaram muitas das minhas percepções e me fizeram virar os olhos para mim e deixar um olhar mais demorado acontecer. Chamei de “vesguice favorável”. Precisei de mais alguns tombos para cair na real mais ou menos um mês depois da viagem, mas sei o quanto esse período me perdendo foi fundamental para me encontrar na medida necessária.

Se hoje digo que estou no caminho certo, com certeza foi graças a essa viagem. E me jogaria mais cinquenta vezes para encontrar o que continuou perdido.