Corona diaries #8

People like us get so heavy and so lost sometimes
So lost and so heavy that the bottom is the only place we can find
You get dragged down, down to the same spot enough times in a row
The bottom begins to feel like the only safe place that you know


Nossa trajetória de viver três meses em um começou no aeroporto de Genebra, na Suíça, e como todo começo de história pós-apocalíptica as coisas já começaram ruins. Saímos de um pequeno paraíso em Champéry para cinco longas horas de espera pela partida do nosso voo de volta para casa. Enquanto remonto as memórias sinto a nossa confusão como se fosse hoje: estávamos ambos desajeitados e em busca de compreensão de um mínimo aspecto do que estava por vir. Enquanto ele se ocupava com questões do trabalho, vi o link do perfil de Fiona Apple na New Yorker (ele foi mencionado em um dos primeiros diários) e decidi que aquela seria minha companhia para o nosso chá de aeroporto. Tomei todo tempo necessário à leitura e passei quase toda a espera concentrada nesta longa conversa de Apple com Nussbaum. Fetch the bolt cutters foi lançado há duas semanas (!). O que poderia ser mais simbólico do que este disco sendo lançado e coroando nosso aniversário de um mês de confinamento?

Não dei continuidade ao Corona Diaries pois, como tantas pessoas, me perdi. Em meio a tantas notícias ruins, perspectivas lamentáveis e muito pessimismo, afundar me pareceu excelente como opção. É tanto esforço para ser forte, resistir e dar conta do pouco que preciso dar conta que deixei meu corpo amolecer e me entreguei. Chega de oferecer resistência. Deixei todo o peso recair sobre o meu corpo, alimentei minha raiva enquanto me informava sobre o Corona – e em particular sobre o que se passa no Brasil – vi minha imagem no espelho e chorei muito por detestar (ainda mais) minha imagem, procrastinei, vi muitos vídeos inúteis no Youtube, senti nojo do meu corpo, enalteci meus defeitos, me desprezei o quanto pude. ‘Cause I fuck with myself more than anybody else. Tudo isso na minha cabeça. Instaurei o caos e deixei assim porque ainda não me sentia pronta para fazer uma faxina.

Ainda não me sinto, por sinal.

O confinamento potencializou dois conflitos que negligenciei no último ano: meu corpo físico e meu futuro profissional. Graças à psicanálise me resolvi muito bem com meu físico e sempre tive uma relação saudável e respeitosa com ele. Até tive minha fase louca das corridas e me acalmei depois de ter uma lesão, mas isso é assunto para outro momento. Mas desde 2015 consegui, na medida do possível, viver de forma saudável. Sou taurina, comer é de longe uma das minhas atividades favoritas, então me privar nunca foi uma opção. Até o início do ano passado não tive episódios compulsivos, comia e bebia o que tinha vontade. A atividade física seguiu presente e era o que ajudava a equilibrar eventuais ‘exageros’ – embora não fosse intencional. Nunca fiz exercício para emagrecer. Minha família tem histórico de colesterol alto e diabetes e bom, sigo a mesma tendência. Manter o corpo em movimento é essencial para me manter saudável. Porém a mudança para Annecy e a transição de carreira foram amargas. A gente nunca está pronto pra nada nesta vida (embora pense que sim), mas foi um pouco mais difícil do que eu esperava. Por questões financeiras e por morar longe de tudo, ir à academia deixou de ser uma opção. Parei de me exercitar em fevereiro do ano passado e nunca mais retomei. Tentei preencher meus vazios com comida e bebida e tive, enfim, uns tantos episódios compulsivos.

Hoje, pouco mais de um ano depois, estou com 13 kg a mais e com terríveis dificuldades em me aceitar desta forma. É difícil falar sobre o assunto pois é deveras pessoal e corro o risco de decepcionar pessoas com problemas sérios de saúde ou com distúrbios de imagem. Nunca tive um ganho de peso tão significativo e como todo evento novo em nossas vidas tenho apanhado para tratar a questão. Fico nesta corda bamba entre trabalhar a aceitação ou começar a tomar medidas para contornar essa situação e voltar (de forma saudável) ao meu peso de antes. Quando penso no que implica mandar fora 13 kg me dá desespero, porque para fazê-lo da melhor forma é preciso tempo E muita paciência. Com a cabeça pilhada do jeito que está – digamos que as coisas não melhoraram muito do ano passado pra cá – e no meio de uma pandemia, como poderia pensar em regime e em me exercitar? Tenho um companheiro que me apoia nas minhas escolhas e nunca ma encheu o saco com relação a corpo e/ou alimentação, mas que também tem sofrido os efeitos do confinamento, que cedo ou tarde acabam afetando todo mundo, então impor uma dieta nos deixaria ainda mais nervosos e esgotados mentalmente. Minha alternativa, por ora, é arriscar alguns exercícios em casa. Como o vizinho reclamou dos abalos sísmicos provocados pelos meus polichinelos (gostaria muito de estar exagerando), encontrei alternativas em treinos apartment friendly da MadFit. Estou sem objetivos no momento, não tomei decisões concretas, mas mexer o corpo ajuda a aliviar o stress e já me sinto menos cansada quando preciso subir as escadas de casa ou pegar a bicicleta para ir ao mercado. Já é alguma coisa.

Foi também na tentativa de me tranquilizar que me desesperei (!!!) mais uma vez quando voltei a pensar sobre minha transição de carreira. O peso do meu corpo causa desconforto, o das minhas escolhas o sobrecarrega e tenho cada vez mais dificuldades em caminhar equilibrando tanto peso. Depois de 7 anos trabalhando como assessora de imprensa (e fazendo uns freelas de redação) fiz um mestrado em produtos e serviços multimídia, trabalhei um ano inteiro como gerente de projeto digital e gostaria de continuar atuando na área. Mas entendo bem a demanda de experiência para o cargo e não tenho o suficiente. Perdi as estribeiras procurando vagas de assistente que não exigissem fluência em holandês, mas as buscas foram infrutíferas. Em diversas ocasiões me candidatei mesmo assim pois sou grande adepta do “não custa tentar”, mas depois de tomar tantos nãos na cara deixei a frustração falar mais alto e tenho sentido cada vez mais vontade de abrir mão e tentar outra coisa. Não houve uma única vez em que ultrapassei a etapa do envio de CV. Não é como se eu tivesse passado por diversas entrevistas sem sucesso – eu nem chego a ser entrevistada. Como manter o estímulo para continuar tentando quando todas as reações são negativas?

No meio da quarentena me vi obrigada a me revisitar e questionar minha trajetória profissional de forma mais rígida. Confesso, doeu. Tenho um currículo ótimo, sinto orgulho de tudo o que fiz até agora e sei que dei o melhor de mim. Só que perante tantos nãos me vi feito um bicho acanhado tremendo de medo. É como se piscasse e me esquecesse de todos bons feitos. As falhas pipocam e preciso fazer uma força monstruosa para dar voz com segurança às minhas qualidades. Por um momento cogitei perguntar qual é a minha maior qualidade aos amigos mais próximos, ou que me dissessem algo que fiz e que os marcou positivamente. Partindo do que os mais querido veem de bom em mim, montaria uma espécie mapa que me ajudaria a explorar cada uma dessas características para me encontrar nelas. Mas me pareceu o cúmulo da carência e no fim das contas é uma tarefa que não pode ser delegada. Depende de mim. Sendo assim, meu presente de aniversário (daqui duas semanas!) vai ser este mapeamento. Tomei nota de algumas pistas que encontrei no meio do caminho destes últimos dias. Vou fazer umas colagens, voltei ao meu bullet journal, e espero ter uma luz a partir de tudo isso para refazer um bom CV e uma boa carta de motivação. E não menos importante, encontrar vagas mais adequadas ao meu perfil. O plano de ser gerente de projeto digital vai ficar para mais tarde.

É difícil descrever o nível de exaustão psicológica em que me encontro e percorri um longo caminho até voltar para este espaço e conseguir escrever com leveza. Seguindo a ordem caótica do mundo, mesmo sem sair de casa muita coisa aconteceu. Os pontos altos do último dia foram Fetch the bolt cutters, a volta da newsletter (repaginada!) de uma amiga muito querida, Sherlock (ainda não havia dado uma chance à série), Rupaul’s Drag Race (cuidado com os spoilers, estamos assistindo as temporadas antigas) e Deerskin. Ainda estou com dificuldades para ver filmes em casa. Me perco com as minhas listas, com dicas de amigos e tentando organizar as atividades do dia para tirar um momento e me concentrar em um filme. Quem sabe uma hora vai?

Quero ver como as coisas vão evoluir agora que aceitei os sentimentos ruins. Deixar sair faz parte do processo de cura. Pode até ser que nasça algo destes tantos cafés que tenho compartilhado com meus demônios pessoais. Vez ou outra cogito produzir outros tipos de conteúdo aqui no blog, de repente falar sobre coisas legais que li e vi neste meio tempo. Por enquanto vou me contentar em chegar ao fim do dia com algum pingo de sanidade. Nos vemos em breve. 🙂

[o trecho que abre este texto é de Heavy Balloon, de Fiona Apple]

Corona diaries #7

Tenho sentido saudade de tocar as coisas. De chegar com a ponta dos dedos e moldá-los paulatinamente na forma do objeto, de senti-lo ganhando peso e se acomodando entre minhas mãos. De atribuir significado, definir, explorar essas formas, observar por inteiro e buscar eventuais defeitos, conferir o preço. Essas trivialidades de passeios descompromissados, o famigerado “vou entrar só para dar uma olhadinha” que nos faz descobrir e em alguns casos expandir a lista de desejos. De transitar de um canto a outro, sentar para tomar um café, observar os passantes e especular sobre a existência de um ou outro.

Esses tempos me deixaram nostálgica de mim. Me transportei umas tantas vezes até meu apartamento em São Paulo pelos últimos dias, caminhei pelas horas em que passava jogada no sofá com minha cachorra no colo e um livro em mãos. Pude tocar a preguiça de ter vida do lado de fora, o conforto dos feriados em que todo mundo viajava e não me via obrigada a sair do meu cantinho. Pensei no quanto gostava de poder ficar confinada por opção, no quanto isso transformava as ocasionais saídas em algo tão mágico e poderoso. Foi estranho e ao mesmo tempo gostoso me revisitar. Não senti necessidade de olhar as fotos ou reler o que escrevia nessa época, mas desde a semana passada fui invadida pelas lembranças dos meus sete anos na selva de pedra. Como um filme passando pela minha cabeça, fui surpreendida pela vivacidade dos fatos. Comecei a me lembrar das coisas como se tivessem acontecido na semana passada e me choquei com a riqueza dos detalhes. Tinha certeza que tudo havia me escapado e só me restavam retalhos de memória, mas não, tudo tá aqui, povoando meu cérebro em um ritmo frenético. Meu inconsciente quer me dizer algo? Não consigo captar nenhuma mensagem, e por vezes me parece apenas uma tentativa de atribuir valor ao passado enquanto documento histórico. Reforçar a importância deste período para meu amadurecimento pessoal. Para mostrar que essa história de auto-conhecimento começou mais cedo do que eu pensava, que no fundo todo o período sozinha ajudou a me afirmar, a entender quem eu era e para o que vinha me preparando. Como se essa invasão de memórias tentasse me dizer que tenho mais força e capacidade do que imagino para construir minha nova vida.

Me senti como se estivesse tocando a outra face dos objetos, que no caso são minhas memórias, tal qual nessas saídas despretensiosas, só que direto do conforto do meu lar, e fosse moldando cada uma em minhas mãos antes de colocá-las de volta na prateleira. Curioso ver o quanto esse processo me fez enxergar o ódio por outra perspectiva. Como se não passasse daquela poeirinha acumulada sobre os livros, que podemos tirar com facilidade só de passar um pano úmido. Fiz as pazes com a Lidyanne de sete anos de São Paulo, aprendi a respeitar seus medos e inseguranças e entendi melhor o valor dessa experiência. Deixei de lado o arrependimento e o “pesar” de minhas escolhas e senti uma felicidade imensa em poder, enfim, encerrar este capítulo da minha vida com respeito e muito amor. Muito do que sou hoje se deve a esta “mulher em formação” que chamou a capital paulista de lar entre 2010 e 2017. Ainda bem que segui sendo pura teimosia, que insisti no meu pedantismo (pois um ser humano é sim cheio de defeitos e isso não é um problema!) e em tudo que me encantava naquele período.

Agora é o momento de pegar essa experiência e trazê-la para ainda mais perto. Resignificar esse cuidado e carinho pela Lidyanne do passado e entregá-lo para a versão do presente. Fui engolida pela agonia de não estar produzindo nada nestes dias de confinamento, o que me tirou as horas de sono e me fez parar todas minhas atividades em andamento.

Essa sensação súbita de nostalgia boa, que não me causou nenhum desconforto, deve ser um sinal inconsciente de que preciso de um pouco desta visão também para o presente. Parar um pouco, desacelerar do bombardeio de notícias, respirar fundo e aprender a tirar algo da dor. Sem ceder ao desespero.