Corona diaries #9


[Aquarela feita pelo meu amigo Caio Naressi. Ele diz que pensou em mim enquanto pintava ao som do álbum Power, corruption and lies, do New Order, em algum momento de Novembro de 2019
]

Queria escrever alguma coisa antes de completar 29 anos. Não que não o tenha feito entre um bullet journal, uma carta de motivação e umas anotações soltas online, mas queria um Corona Diaries de prefácio para o meu réveillon. Já faz mais de uma década que aprendi a conjugar o verbo se réveiller (em tradução livre: despertar). Réveillon, que nós associamos à virada do ano no Brasil, é a primeira pessoa do plural na conjugação. Quando começava a estudar francês e descobri o significado deste verbo achei bonito o conceito de ‘despertar’ como rito de passagem. Desde então adotei à minha humilde realidade. Gosto da sensação de fazer planos e me encher de perspectivas para o ano que está por vir pela perspectiva da minha data de nascimento. É até um pouco doido falar sobre a intensidade com que experimento um sentimento de renovação a cada quatorze de maio.

Aniversariar sempre foi algo muito íntimo para mim, decorrência provável deste ato simbólico de transição. Preparar-se para um novo ano e se despedir do ano que passou demanda entrega, vasculhar as memórias, analisar o que está encaminhado, checar o que precisa ficar para trás, ver o que pretendemos levar adiante, pensar nos possíveis planos futuro. Convenhamos, é um trabalho custoso. Toma tempo e exige um pouco de concentração. E bem, é minha vida, essa transição depende exclusivamente de mim. Por isso sempre gostei do toque de recolher, de voltar para minha concha e fazer todo este trabalho reflexivo no conforto dos meus pensamentos. Tive contudo meus momentos de variação. Em dados períodos senti vontade de ser lembrada, fiquei animada para comemorar, fiz festinhas, me presenteei. Nunca fui muito chegada a narrativas lineares e deixei essas manifestações falarem por si quando aconteceram.

No início do ano mudei de país e, desempregada, já sabia que não poderia ver meus pais no primeiro semestre e que não poderia trazer meus amigos mais queridos para a Holanda. Ou seja, não teria quórum suficiente para uma festa. Então veio o corona e a certeza de que seria inviável reunir as oito pessoas que conheço no país e que poderiam eventualmente se deslocar até onde moro. Todos os caminhos me levaram de volta à introspecção em 2020. Porém neste processo de contar os dias sem saber quantos dias faltam também perdi toda e qualquer noção de tempo. Um dia fui dormir e quando acordei já era 13 de maio, um dia antes do meu aniversário. Foi no susto.

Desde a última cartinha tentei ter mais cuidado comigo e conversei cada vez menos com as pessoas. Precisava de um tempo em silêncio. Foi preciso lidar com muito barulho aqui dentro, comprar algumas brigas comigo mesma, repensar todas as lições pelas quais passei desde Maio de 2019. Em alguns momentos doeu muito, em outros chorei de alegria, como diria Roberto Carlos, se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi. E bota emoção nisso! Depois de meses difíceis em Annecy tenho aprendido a me afirmar e me posicionar. Eu achava que sabia, e talvez até soubesse, mas desaprendi, desandei, e agora tenho tentado reorganizar essas pecinhas confusas que me compõem. Comemorei um ano de um dos encontros mais bonitos da minha vida, começamos uma série nova entre tantas que vimos na quarentena, desabei a chorar depois de uma chamada de vídeo com a minha mãe, comecei a anotar frases que ouvi em Rupaul’s Drag Race e que viraram pauta para minhas sessões de psicanálise. Também li os drops diários para salvar o minuto, me senti abraçada e tive ainda mais certeza do que desejo para os 29 anos: afeto e leveza. Afeto para apaziguar momentos complexos, leveza para encará-los.

Hoje cedo resolvi colocar minha playlist de músicas mais ouvidas em 2016 (!) e esbarrei em Colors, de Halsey, no meio da seleção. Senti tanto quando ela disse you’re ripped at every edge but you’re a masterpiece. Escolhi como mantra do meu ‘despertar’ dos 28 para os 29. Vou abraçar minha idade nova mentalizando que nunca serei definida pelo meu corpo e nem pelo meu trabalho. Tenho mil motivos para ter orgulho das minhas cicatrizes e tirar o melhor de todo meu aprendizado e conquistas ao longo destes (quase!) 29 anos.

A gente se irrita tanto com bobagens quando só precisa de um pouco de sossego e afeto. Vinha me sentindo despedaçada desde o início do confinamento por uns tantos motivos (muito bem mencionados no último diário), mas de tanto ouvir meu companheiro comecei a abrir meus olhos. Dei início a todo um processo para me reconquistar e parar de esquentar a cabeça com assuntos que nem deveriam mais ser colocados em pauta na minha vida.

De pouquinho em pouquinho retomo a capacidade de me sentir como uma obra prima. Tudo em sem tempo.