Pessoas horríveis, o livro e a série

É difícil passar pela leitura de Pessoas Normais, de Sally Rooney, sem sentir muito. Sentimentos estes entendidos como negativos: raiva, indignação, frustração. Pode ser que você se identifique com os personagens, mas o risco de passar nervoso é o mesmo. Vi muitos amigos comentando sobre a obra, sobretudo pessoas com preferências literárias semelhantes às minhas. Mas o que me motivou a comprar e ler foi a capa. Fiquei intrigada com a associação que fiz entre o título e aquelas duas pessoas espremidas dentro de uma lata de sardinha. Palmas à ilustradora, que com uma imagem tão simples anunciou a essência do enredo. Rooney conta a história de Marianne e Connell, dois jovens que estudam no mesmo colégio no interior da Irlanda. Ela parte de um clichê bem conhecido – a moça é uma nerd sem amigos, ele faz parte do time de futebol e é bem popular. A história deles acaba se cruzando pois para além da escola, a mãe de Connell trabalha como faxineira na casa de Marianne.

Eles se envolvem, mas ninguém pode saber pois a popularidade de Connell seria ameaçada. Marianne se silencia, assumindo a postura do “isto não está me fazendo mal, não tem problema algum”. Um lugar comum entre os millennials – muita disposição para pegação, zero desenvoltura para assumir sentimentos. Existe essa ideia de ‘conforto’ no não dizer. Se você não manifesta verbalmente como se sente, é como se os sentimentos não existissem.

Como em todo bom enredo, ele é composto por diversas camadas e a primeira impressão é um tanto superficial. Como se fosse só mais uma história corriqueira de romance frustrado que se limitasse a discutir conflitos de comunicação. Conforme você adentra nas nuances da história, mais ela passa a levantar questionamentos – e sinto que a série foi muito benéfica neste aspecto. Todos os pontos que me pareceram meio soltos na obra foram bem explorados na adaptação televisiva.

Começo por Marianne. Ela tem uma personalidade forte, é firme em seus discursos impessoais. Uma pessoa que fala com propriedade sobre qualquer assunto que não seja relacionado a como ela se sente enquanto ser humano. Isso explica um pouco da minha impressão inicial, quando a vi como alguém introspectiva e só. Conforme a história avança as cicatrizes dela começam a se mostrar. Marianne nunca foi amparada por ninguém. Embora Rooney não dê muitos detalhes sobre o pai dela, sabemos que ele não é flor que se cheire. Tanto no livro quanto na série ele não dá o ar da graça em nenhum momento, mas fica implícito que a relação dele com a esposa, então viúva (o pai de Marianne faleceu quando ela tinha 13 anos) não era das melhores. Isso reflete, em certa medida, na forma como ela se ocupa dos filhos. Marianne é negligenciada a ponto de não ser defendida durante uma das discussões com o irmão, Alan. Ele tem um comportamento violento, tanto que acaba agredindo a irmã fisicamente em uma das sequências.

Marianne cresceu entre dois homens insolentes, então digamos que suas referências masculinas não eram das melhores. Nós vemos como ela preenche esse vazio com namorados lamentáveis e abusivos. O amor próprio mandou abraços para nossa protagonista. O fato de nunca ter sido protegida acaba refletindo também nas amizades. Uma vez que ela parte para Dublin, sua popularidade aumenta. Ela passa a frequentar pessoas com o mesmo padrão financeiro de sua família e no mesmo nível intelectual dela. Tudo aquilo que fazia dela a esquisita da escola veio a ser uma qualidade em seus anos universitários. Rise and shine, Marianne. Salvo que tudo que nos dói e não é tratado acaba ressurgindo uma hora ou outra. Sua vida é toda preenchida por superficialidades que escondem os problemas.

Corta para Connell. Enquanto adolescente, a popularidade na escola é tudo que ele tem. Ele não quer colocar essa fama em risco, pelo contrário. Quer aproveitar até onde pode, a ponto de silenciar seus desejos. Ele vive com a mãe, Lorraine, uma das melhores personagens desta história, por sinal. Eles fazem parte de uma classe menos abastada, ela é mãe solteira e trabalha fazendo faxina. Connell tem uma boa relação com ela, mas ainda é muito imaturo. E parece convicto de que sua popularidade o acompanhará para onde for. Percebemos que ele não é desrespeitoso com Marianne em nenhum momento, mas tampouco assume alguma responsabilidade. E é aí que as coisas se complicam. Ele não sabe mensurar o impacto de sua imaturidade até debandar para a capital e se ver tão perdido quanto a Marianne do colégio. Ele sente o gosto amargo de não conseguir constituir laços, de não conseguir se impor nesta sociedade cheia de pessoas ricas e ditas inteligentes demais. Acompanhar o processo dele ao tentar se impor e ter uma voz entre pessoas que nunca fizeram parte do seu círculo social é doloroso. Ele encontra meios de ‘existir’ neste contexto, e, embora não se sinta 100% confortável, passa a encarar a realidade com um pouco de leveza. Sobretudo depois do mochilão que ele faz e ao começar seu namoro com Helen.

Se Marianne e Connell não se tornam um casal, não é puramente por falta de comunicação, mas também pelo conflito social. Connell passa boa parte do enredo preso, sente culpa ao se ver com alguém que não possui as mesmas condições. Isso não é verbalizado em nenhum momento, mas acaba saltando nas entrelinhas. Embora pareça tolo se importar com um fator tão ‘banal’, acaba sendo uma forma de bloqueio. Esse impacto é evidenciado pelo encontro com Marianne em Dublin, que confirma a ideia construída por ele de que eles não fazem parte “do mesmo mundo”. Ela é o único lar que ele tem por ali, visto que eles carregam uma conexão longíqua e ao menos ela o conhece independentemente de qualquer estigma social. Ele não consegue abrir mão de sua vida anterior e culpabiliza ainda mais com a notícia da morte de um de seus amigos da escola mais para o fim do livro, que o encaminha para uma depressão e o faz trabalhar a aceitação de que talvez as coisas não estejam lá tão bem assim. E que por vezes é necessário parar e repensar a nossa lógica de vida para poder seguir em frente.

Marianne, por sua vez, tem sua revelação em meio a uma cena de abuso psicológico por parte do seu namorado que ela arranja durante uma temporada na Suécia. Ela tem uma iluminação e entende que não precisa se submeter a humilhação para ter uma migalha de amor, e neste momento ela passa a se questionar sobre como foi parar neste lugar. É um primeiro respiro para a personagem, que passa todo o romance emendando um namorado merda no outro. Mas ela ainda tem muito chão pela frente (quem nunca) e isto é posto à prova quando ela empreende uma nova etapa com Connell. Quando tudo parece se encaminhar para um relacionamento saudável entre ambos, quando eles enfim conseguem conversar como pessoas normais que assumem suas inseguranças, um deles precisa partir.

Embora tenha levantado muitos aspectos positivos, o livro me deixou um tanto decepcionada. Boa parte dos pontos que me deixaram reflexiva só vieram depois de assistir a série. Custei a me implicar na narrativa, que me pareceu um tanto vaga. Só conseguia sentir raiva, vontade de dar um chacoalhão nesse povo e mandar todo mundo pra terapia. Um lado meu dizia que este sim poderia ser um livro que dá voz a nossa geração, esse bando de gente que sofre pra dar nome ao que sente. É um retrato perfeito da agonia relacional dos millennials. Nesse sentido Rooney é maravilhosa, mas faltou alguma coisa que me cativasse de verdade. Essa ‘falta’ foi 100% preenchida pela série, que tapou todos os buracos que a obra havia deixado para mim. As atuações são incríveis, Daisy Edgar-Jones e Paul Mescal possuem uma química surreal e constroem uma Marianne e um Connell quase palpáveis. Tudo que faltou em emoção no livro, transbordou na série.

Independente de ter gostado mais da série que do livro, Pessoas Normais me marcou e considero como uma obra muito significativa e sintomática de nossos tempos. Um retrato delicado de como podemos soar banais na superfície e o quanto isso se afirma em uma geração tão dependente da imagem que passam nas redes sociais. Mas que no fundo somos todos seres complexos e cheios de questões que temos dificuldade em abordar e exteriorizar. Se você ainda está hesitante sobre ler ou assistir, te dou aqui um último empurrão para fazê-lo. Não é só mais um romancezinho.

(Gostaria de deixar um agradecimento especial ao Caio e ao Carlos, que levantaram pontos importantes da série comigo e me motivaram a escrever este texto!)

Eu me peço desculpas

Dia desses estava tomando um café e me peguei num destes desconfortos existenciais. Realizei, naquele momento, que havia me perdido de mim. Minutos antes estava ouvindo um podcast sobre mentir para si mesmo. Era em clima de comédia, aquele método básico que consiste em usar o humor como saída para algo que lá no fundo te causa muito incômodo. Eu ri e me identifiquei em vários aspectos para mais tarde cair na real e experimentar uma bela crise de pânico. Foi como se eu tivesse despertado de um coma e me dado conta de quanta coisa eu fiz – mentindo para mim mesma – enquanto sufocava tudo o que realmente tinha vontade de fazer. É muito fácil se perder e acumular bagunça. Eu sou especialista, não duvido que seria capaz de criar uma instalação de arte contemporânea bem conceitual em cima disso. Porque acho bonito isso de dar a cara à tapa, de se jogar nas aventuras da vida, de se perder e ver nisso um caminho. Saber se reconstruir e até criar algo em cima disso.

Eu nunca soube fazer isso. Mas aprendi a fingir que era mestre e soube sustentar esta narrativa por anos. Convicta da minha força e capacidade para chutar bundas, mudei de país dez meses atrás. Com um diploma de Mestrado novinho em folha na bolsa e a convicção de que meu inglês estava tão perfeito quanto o francês. Neste meio tempo não tive trabalho, não estudei, não fiz na-da. Vi uns poucos filmes e li pouco mais de dez livros. Tive uma fase onde devorei séries, que logo se dissipou. Tentei começar a me exercitar um sem número de vezes, abandonei todas. Entenda, isso talvez soe como alguma coisa para você. Porém é um grande nada para mim, uma pessoa que, de base, era muito ativa.

Tive uma outra fase de desemprego lá pelos idos de 2015. Foi o período em que descobri e comecei a psicanálise, e estava tão obcecada que aquilo me fez explorar ao máximo a minha capacidade de ressurgir das cinzas. Tinha uma urgência em rebater uma das frases que mais me marcou na primeira sessão, “eu sou muito fraca”. Sambei na cara da minha frustração em nunca ter trabalhado com reportagem e produzi várias, passei a fazer conteúdo para publicações físicas e online (e ser paga para isso!), escrevi muito, participei de um projeto super querido onde escrevia sobre o que dava na telha, melhorei minha performance na corrida e comecei a fazer natação. Dei fim a um relacionamento tóxico e passei a me afirmar cada vez mais.

Essa intensidade toda me levou longe e parecia duradoura. Conquistei muita coisa, até ter um tropeço de ansiedade que veio com tudo e me fez repensar a força pela qual batalhei e me sentia tão orgulhosa por ter conquistado. Dei o braço a torcer, aceitei que precisaria cuidar da ferida. Na minha cabeça havia curado a doença, mas hoje vejo que só fiquei trocando os band-aids. E a cada band-aid novo eu adicionava uma camada, incrementava a narrativa e tentava me agarrar ao fato de que uma hora essa porra ia cicatrizar e eu poderia seguir a minha vida em paz.

O cérebro, essa cabra da peste dos infernos… ele esteve aqui o tempo inteiro. Me dando uns toques para a realidade, me pedindo para ser atenta. Eu fui achando meios de ocultar todos estes sinais. O problema, você já deve imaginar, não é tão complexo assim: se a ferida é um pouco mais profunda essa parada de ficar só trocando band-aid vira uma infecção. Tive uma. Fiquei aqui estagnada, me sentindo um ser humano horrível por chegar ao mês 09 sem ter feito nada e sentindo os efeitos físicos destes vazios.

É muito potencial perdido. Vou abrir meu coração: eu amo escrever. É onde me sinto livre, é o momento em que mais me conecto comigo mesma, onde me sinto bem de verdade. Desde pirralha a escrita é minha válvula de escape e minha salvação em momentos de angústia. É prazeroso quando tenho algo para contar, é divertido quando só quero ter um breve registro de algo que vi ou vivi. Gosto de encher cadernos, até quis fazer da escrita minha profissão quando optei pelo Jornalismo. Entretanto ainda tenho um obstáculo: eu. Passei anos encontrando todos os defeitos do mundo nos meus textos e abandonando inúmeros parágrafos por dizer “que não estava bom o suficiente”. Embora nunca tenha me questionei sobre o que era este bom, tampouco tentei definir este bom. Porém soava mediano, perante um breve bloqueio já largava mão. Até hoje tenho meus rascunhos neste blog e em outros criados antes deste, e em to-dos acumulo parágrafos sem fim. Sabe o produzir conteúdo mencionado anteriormente? Também abri mão porque deixei de acreditar que alguém fosse querer pagar pelos meus textos quando as publicações para as quais colaborei fecharam as portas. Fui adepta do “não devo transformar a escrita em trabalho pois vou perder a paixão que tenho por ela”, que evoluiu para o “eu nem teria criatividade para ser redatora, foi por isso que não dei certo como jornalista”. Até mesmo a parte de entretenimento, que sempre me foi super acessível, larguei. Não foi por falta de ideias e tampouco de vontade, tanto que comecei. Dei o pontapé inicial diversas vezes, mas faltou a tal da força para derrubar os empecilhos que eu mesma criei e seguir caminhando.

Fraude atrás de fraude. Eu menti muito. Fiz uma formação em tecnologia, me dediquei ao longo de dois anos porque queria ter uma profissão com salários mais atrativos. Não nego, ainda quero. Porque tenho essa pira de fazer um bom trabalho e ser remunerada como mereço. Me encantei pelo universo da tecnologia e sinto que minha relação com a gerência de projetos digitais ainda tem potencial e talvez seja cedo para declarar nosso término. Mas me perdi de mim. Me abandonei sem dó.

Enxerguei com muita clareza o quanto preciso ser sincera comigo e lutar pelo que condiz com a minha essência. Precisava me desculpar depois de tanto falhar comigo mesma, é fato. Escrevi esta carta para pedir perdão por ser tão cruel e exigente comigo mesma. Quero reparar este erro. Tenho este corpo cheio de agonia, não vai ser fácil, mas agora é a hora de iniciar minha batalha contra a urgência.

Desta vez vai ser no meu tempo. Seja ele qual for.