Como não ser atropelada a cada esquina

ou ‘os cinco maiores clichês da Holanda’

Den Haag (a cidade onde moro) em uma manhã de inverno

Sou uma pessoa que carece de concentração nas primeiras horas do dia. Até consigo fazer um milhão de coisas, mas é tudo executado no modo automático, não penso, tampouco raciocino ou produzo efeito sobre minhas atividades. Isso tem um total zero de impacto na vida de uma pessoa desempregada e ainda em vida no meio de uma pandemia. Estou presa em casa, o pior que pode acontecer é deixar algo cair no chão ou esquecer a roupa recém-lavada dentro da máquina por algumas horas. Porém Outubro chegou, o mundo segue em desordem e não vou mais viajar, tampouco sair do país pelos próximos três meses, achei por bem me inscrever em uma academia pois ando insatisfeita com a minha forma física. Nessa vida me falta cada vez mais estímulo, sabe como é, essa vontade de existir que anda definhando mais e mais. A academia pareceu uma boa solução pra colocar meu corpo em movimento e não deprimir com a chegada do inverno. Se não sair de casa nas tais primeiras horas do dia sei que vou procrastinar até o fim dos tempos e terminar jogando a mensalidade no lixo. Enfim. Foi numa dessas que, munida de toda desconcentração do mundo, coloquei um podcast pra tocar e parti rumo aos meus 15 minutos de caminhada até a tal da academia, para quase morrer atropelada durante 5 segundos de distração. Porque na Holanda você pode estar parado, olhar para sua esquerda, direita, suas costas, o céu e adiante, e ainda assim ser atropelado por uma bicicleta, um carro, um ônibus, ou até mesmo por um outro transeunte.

Será que as regras de trânsito daqui são diferentes? Ou só eu que sou tonta demais e não deveria me distrair por um segundo sequer? Fiquei às voltas com esta pergunta em mente, no dia em que tiver um salário vou investir em um curso de atualização das condutas de trânsito para ver se me sinto um pouco mais segura.

Foi durante uma dessas reflexões que veio a vontade de falar sobre os clichês da Holanda pela minha perspectiva. Sem querer cair naquele “clichês que são reais”, mas já caindo, resolvi listar alguns dos lugares comuns que tanto me anunciaram e que foram se confirmando com a passagem dos primeiros meses aqui. Frisando que essas impressões são de uma pessoa que passou a vida toda no Brasil e que, depois de dois anos morando na França, certamente vai fazer algumas comparações inspiradas no que vivi no país das baguettes oui oui oui.

Sim, você pode ser atropelado a qualquer momento.

Passei a vida achando que a calçada era um lugar relativamente seguro para quem precisa parar. Que seja para amarrar o cadarço solto, checar o Google Maps ou mudar de playlist, se você quer parar no meio de uma caminhada, provavelmente vai fazê-lo na calçada. Só que a Holanda é freestyle e o céu é o limite. A cena que descrevi no início deste texto foi real, e o CAMINHÃO que quase me atropelou era de lixo. Porque sim, todo tipo de veículo pode subir na calçada quando você menos espera, todo cuidado é pouco. É difícil me ver saindo de casa sem fones de ouvido, mas desde a mudança pra Holanda foi preciso baixar o volume para ouvir eventuais invasões de calçada. Já teve dia em que fui surpreendida por três caminhões desses gigantes de mudança num curto trajeto de quinze minutos. A rua onde moro é muito estreita, só tem espaço para um carro passar por vez. então quando precisamos descarregar as compras do mercado…subimos gentilmente na calçada. Porque senão os outros carros não conseguem passar. Será que é isso? As limitações físicas das cidades impulsionaram os holandeses a subir nas calçadas quando fosse preciso, sem checar se há um pedestre ou ciclista no caminho? Me parece que achei uma das respostas. Caminhar pelas ruas perdeu todo o tom de flâneur urbana que um dia tive na França, pois nunca é tranquilo. Confesso que vez ou outra me pego contando a quantidade de vezes em que fui surpreendida por carros ou caminhões nas calçadas durante um trajeto.

Tem bicicleta pra mais de metro mesmo

Ainda no tópico atropelamentos, temos aqui a maior provocadora de acidentes de toda natureza: a bicicleta. Ela merece demais o seu lugar nos cartões postais do país. Já que a circulação de carros é um tanto dificultosa, é natural que tenham considerado mais fácil se deslocar de bicicleta. Em termos de manutenção sai muito mais em conta. Até porque ter um carro custa bem caro por aqui. E não há tempo ruim para os holandeses. Eles passam boa parte da vida deles debaixo de chuva, então nada pode abalá-los. Faça chuva ou faça sol, a circulação de bicicletas é sempre intensa. E você vai ver de um tudo. Tem gente que carrega três crianças num carrinho anexo, tem gente que fala ao telefone enquanto carrega a sacola de compras do mercado (PEDALANDO, você não leu errado), tem gente que carrega um móvel desmontado. Aqui é fácil encontrar estacionamentos exclusivos para bicicletas! E você pode ir de uma cidade para a outra pedalando pois existe faixa de pedestre em tudo que é canto mesmo. A Holanda leva essa história de mobilidade urbana muito a sério e eu adoro.

Um sábado ensolarado em Leiden

Eles amam fritura. E pão com granulado de chocolate

Poderia listar inúmeras coisas que adoro por aqui, mas o intuito deste post é falar sobre as peculiaridades, aquelas coisas que me surpreenderam ou me chamaram atenção de alguma forma. Nem tudo são flores, e a Holanda é tipo os Estados Unidos da Europa (roubei esta frase do meu vizinho argentino, obrigada, Alejandro). Para começar, todo mundo fala um inglês tão impecável que por vezes fico confusa quando vejo as placas em holandês. A mentalidade e a cultura americana possuem forte influência, e isso se reflete bastante na alimentação. Holandeses valorizam a pausa para o almoço, mas não gostam de desperdiçar o precioso tempo que possuem. É conhecido que muitos deles comem só um sanduíche ou um pão com pasta de amendoim ao meio-dia. Eles deixam para preparar algo quentinho à noite, na hora do jantar. Bom, eles jantam cedo, por volta das 18h – o que para mim é reflexo da fome provocada pelo almoço simples. É um lance cultural, não quero ser ofensiva com os holandeses, mas vim de um país onde temos o costume de comer bem no almoço. E eu gosto de comer algo que me dê sustança para dar conta do resto do dia. Hábito que levei comigo pra França (só foi preciso reduzir a quantidade).

Mas o lance é: como bons americanos, os holandeses adoram uma fritura. Tudo que eles puderem tacar no óleo, vão tacar. E isso é mágico pra quem curte uma junkie food vez ou outra, não nego. Se alguém me pergunta o que há de comida típica na Holanda, respondo, sem pestanejar, Bitterballen. É basicamente uma bolinha de carne (quer dizer, eu acho que tem carne. Nunca pergunte a um local do que é feito, é um grande mistério, uma lenda do país) frita, servida com mostarda em porções de 6 ou 8 bolinhas. Estrelinha do happy hour e do apéro (aquela saudade de um bom apéro francês). Em qualquer bar e restaurante você pode encontrar uma boa variedade de salgadinhos fritos para petiscar, por sinal. Estamos colados na Bélgica, e a tradição de consumir boas batatas fritas foi apreciada e adotada pelos holandeses.

Agora um lance que ainda não entendi muito bem e tenho dificuldades em aceitar é o Hagelslag. Você entende porquê tenho apanhado tanto para aprender holandês? Este é o lindo nome usado para designar granulado. Os mercados possuem uma prateleira inteira só com variedades de hagelslag. De chocolate ao leite, chocolate branco, colorido, com grãos mais grossos, raspas de chocolate… tirei uma foto para ilustrar. Daí eles pegam uma fatia de pão de fôrma, passam manteiga (pra dar liga), jogam o granulado por cima e mandam pra dentro. Por isso as crianças daqui são tão felizes. É o açúcar no sangue.

Uma prateleira inteira de Hagelslag!

A cerveja no cinema é real

Curiosidade inútil do dia: Quentin Tarantino escreveu boa parte do roteiro de Pulp Fiction em Amsterdam. Ele fez questão de deixar singelas homenagens aos Países Baixos no texto. Durante um dos diálogos entre Vincent (John Travolta) e Jules (Samuel L Jackson), Vincent comenta que em Amsterdam você pode pedir uma cerveja no cinema. E que ela é servida na garrafa mesmo, como em um bar. O barulho da garrafa de Grolsch (pois nem só de Heineken vive este país) abrindo em sequência na sala de cinema é um clássico e foi uma das coisas que mais me marcou quando chegou aqui. Sou rata de cinema, como dá para perceber em uma breve folheada neste blog. No Brasil só as grandes redes servem pipoca, guloseimas e refrigerantes. O mesmo vale pra França, mas muitos dos cinemas ‘de rua’ não servem nenhum tipo de comida. Na Holanda vale tudo em todos os cinemas. Se você estiver tomando um vinho no bar do cinema e sua sessão for começar em 5 minutos, você pode ir ver o seu filme com a tacinha em mãos, sem problemas. Nas minhas muitas idas ao cinema, sobretudo em tempos pré-Covid, nunca vi ninguém derrubar ou quebrar um copo. Galera treinada.

Você pode encontrar sua encomenda na casa do vizinho

Assim como a bike, o serviço dos correios também é freestyle. Foi difícil entender a dinâmica deles quando cheguei por aqui. Assim como na França (e imagino que em muitos países da Europa), você tem uma caixinha de correio na entrada do seu prédio ou na frente da sua casa. O jeito mais fácil de acertar a caixa de correio, caso o número do apartamento não esteja claro, é pelo nome. Quando você faz uma encomenda, caso ela caiba na caixa de correio, eles nem interfonam. Mas se for algo grande ou que demanda assinatura, eles tocam a campainha. Se ninguém estiver em casa – e juro que um dia esse conceito de casa vazia existiu – eles deixam na casa do primeiro vizinho que responder. Já aconteceu de receber encomendas pra gente que nunca vi na vida, já precisei bater na porta de gente que nunca vi na vida para retirar minha encomenda. Altas emoções. No Brasil isso instauraria o caos absoluto, mas aqui funciona bem.

Peço desculpas a você que leu este texto até o fim na expectativa de descobrir como não morrer atropelado, mas a verdade é que eu ainda não descobri. Se alguém tiver um insight, aceito de bom grado. Caso encontre respostas, volto aqui para contar minha experiência. Na real foi só uma desculpa para falar sobre a Holanda e as impressões que tive desde a minha chegada por aqui. Escrever sobre minhas vivências foi ótima, nenhum texto foi escrito tão rápido quanto este nos últimos dois meses. Revisitar esses clichês ajuda a gente a aproveitar melhorar a experiência de um país que não é o teu de origem. E até a rever certos costumes com outros olhos.

Encerro aqui, pois agora é hora de ir fazer minha contagem (quase) diária de veículos que sobem na calçada.

On the rocks, de Sofia Coppola

Envelhecer dificultou o processo de remontar minhas memórias com precisão. Me situar na passagem do tempo passou a ser um tanto desafiador, sobretudo agora, estando bem próxima dos 30. Apesar das imprecisões, tenho lembranças de ter adentrado em uma das fases mais chatas críticas da minha adolescência na época em que assisti Lost in Translation. Foi meu primeiro filme de Sofia Coppola e, enquanto adolescente deslumbrada que descobre a existência do cinema para além dos filmes da Disney e das comédias pastelão, foi um marco significativo. Fiquei encantada com o jeito de filmar de Sofia, os enquadramentos, a delicadeza da amizade estabelecida pelos protagonistas, o quão mágico o Japão me pareceu, o quanto a diretora exprimia sem precisar dizer muito. Aquilo me fascinou e logo fui atrás de The Virgin Suicides e Marie Antoinette, que havia estreado há pouco. Na minha perspectiva jovem dava para sentir o quanto ela se colocava implicitamente no enredo. Transformou-se em uma grande referência para mim. Achava potente esse jeito de deixar escapar tanto sobre si ao contar uma história alheia. Hoje, quase quinze anos mais tarde, fui assistir a nova produção da Sofia, On the rocks, e saí do cinema com uma impressão diferente. Ficou uma sensação de pressa, algo tão atípico para quem se criou na contemplação Coppoliana (sim, eu inventei este termo agora).

A trama é simples: Laura (Rashida Jones) vive em Nova Iorque com o marido, Dean (Marlon Wayans), e as duas filhas pequenas. Ela é escritora e trabalha de casa, enquanto ele mantém uma agenda cheia trabalhando para uma start-up em ascensão. Laura começa a suspeitar que ele tem um caso com uma de suas colegas de trabalho e essa desconfiança aflora no momento em que seu pai – descrito inclusive pela diretora como um playboy, Felix (Bill Murray), reaparece depois de uma temporada ausente.

Aviso aos navegantes – embora não discorra sobre o desfecho, devo comentar detalhes do enredo que podem ser entendidos como spoilers.

Diferente de tudo realizado por Sofia até agora, On the rocks é um filme mais “ágil”, sem aquelas longas sequências contemplativas que são sua marca registrada. Não há momentos icônicos e memoráveis, nada que te marque e te faça repensar por horas depois. Não é a intenção. Para mim ele foi como um desses drinks leves que a gente pode apreciar com moderação e que nos deixa meio alegrinha quando acaba. É descompromissado, feito para você se desconectar por alguns momentos da realidade e rir um pouco dos absurdos ditos por Felix e para eventualmente se identificar com as nóias de Laura.

Depois de apontar defeitos e dizer que não há nada de memorável neste filme, você deve estar perguntando se eu gostei mesmo (ou porquê raios resolvi escrever sobre). Vou te poupar de enrolações desnecessárias. A resposta é sim. Em momentos de tanto caos e incertitude, a verdade é que eu precisava de um filme assim. Os desgraçamentos mentais que a Sofia me propôs no passado foram violentos, então confesso que gostei da possibilidade de ser poupada e ter um breve afago vindo dela.

Em contraste com a carreira bem sucedida de Dean, Laura está no meio de um bloqueio criativo. Enquanto pessoa que escreve posso afirmar o quanto este bloqueio alimenta toda sorte de paranoia. Incapaz de sentar a bunda na cadeira e escrever uma mínima frase que faça sentido, começo a pensar nos problemas que tenho enfrentado e em todas as coisas que preciso resolver ainda esta semana. Sinto a concentração flutuar para bem longe, potencializando meu jeito desastrado de lidar com a vida. Essa sensação é muito bem retratada por Rashida Jones. Diferente de mim, ela vive esse conflito enquanto cuida das duas filhas pequenas. A estafa mental com o cuidado com as meninas recebe certos alívios cômicos em especial nas sequências onde sua ‘amiga’ Vanessa (Jenny Slate) conta suas aventuras nos corredores da escola. Ou em uma das sequências em que Laura encontra seu pai ensinando as meninas a blefar. Neste contexto é fácil imaginar como Laura alimenta desconfianças sobre a fidelidade do marido. Seu pai, com tempo livre de sobra, embarca nesta suspeita e os dois passam a vigiar as ações de Dean.

Adoro Murray no papel de tiozão, cheio de tiradas ridículas e baratas e colocações machistas daquelas que nos fazem virar os olhos de tanta vergonha alheia. Cá entre nós, em diversos momentos me fez pensar no meu pai e em todas suas colocações inapropriadas. Embora seja algo que dê nos nossos nervos na vida real, no filme soa engraçado e traz um certo alívio cômico, graças à química e à leveza da interação dele com Jones. É como se eles de fato fossem pai e filha. Esta é, por sinal, a proposta do filme: construir uma narrativa sobre a paternidade. Essa intenção é anunciada logo no início, quando ouvimos uma voz masculina dizer, no escuro “and remember: don’t give your heart to any boys. You’re mine, until you get married. Then you’re still mine”. É sobre essa proteção paternal que pode até ser doentia, mas aqui é encarada com leveza e em tom de comédia. Sofia explora um pouquinho sobre como essa relação evolui ao longo dos anos e o que podemos fazer para manter um laço afetivo de forma saudável.

Existe muito da Sofia das antigas por aqui. Temos mulheres solitárias em seus conflitos internos, uma Nova Iorque cinza e melancólica que contrasta com o tom de comédia do filme e personagens que levamos conosco por um tempo após o fim da projeção. Embora o foco seja a relação entre pai e filha, existe uma vibe meio Lost in Translation, e este foi um dos fatos que me fez ter tanto afeto pelo filme. Me deixou nostálgica da filmografia de Sofia e com saudade do meu pai, que graças a este micróbio desgraçado já não vejo há mais de um ano.

É isso. Não há nenhuma reflexão, tampouco uma lição de moral. Isso pode soar frustrante para quem gosta da Sofia das antigas, mas minha dica é não se levar tão a sério. Ela segue presente em cada frame, porém com certo distanciamento e com uma nova roupagem. Como se anunciasse que agora tem maturidade cinematográfica suficiente pra fazer o que me entender, inclusive um trabalho que destoa de toda sua filmografia. A realidade anda difícil demais de digerir, nós merecemos um pouco de alívio cômico para apertar o botão off da realidade durante uma hora e meia de projeção.

Um brinde aos meus três anos de Europa (ou quase isso)

Arte por Isabelle

Sabe aquela sequência clichê das séries onde a protagonista acorda cheia de energia, toma um banho super empolgada, se arruma, veste sua roupa favorita, e justo no momento em que sai de casa uma pomba passa e caga na cabeça dela? É uma metáfora perfeita da mudança para o exterior. Quando chegou a minha vez, me senti a mestre do planejamento depois de organizar cada detalhe e partir com o coração aberto à essas novas oportunidades oferecidas pela vida em outro país. Mas ele me recepcionou defecando na minha cara. Como boa mulher brasileira forte e que não se abala com pouca coisa, eu primeiro xinguei um sonoro desgraça, limpei a sujeira e comecei outra vez. Acontece que fui pra França, e a população de pombas é enorme e forte por lá. Tomei muita bosta na testa. Comecei a me irritar com esta ação repetitiva e levei um bom tempo até aprender a contorná-la e a não me deixar afetar. Quando me senti com o mínimo de controle da situação, certa de que estava pronta a enfrentar situações semelhantes em qualquer lugar do mundo, juntei minhas malas e fui arranjar um jeito de chamar a Holanda de casa.

E aqui quem caga na minha cabeça são as gaivotas.

É um lugar comum entre muitos brasileiros que partem ao estrangeiro: nós gostamos de fazer um texto comemorativo para celebrar mais um ano de sobrevivência longe do Brasil. Chamo de ‘sobrevivência’ pois é vitorioso e precisamos nos parabenizar por nos vermos cada vez mais fortes longe de tudo que nos é tão familiar. Faço parte deste grupo e amo o exercício de fazer uma espécie de retrospectiva do ano que passou. Reviver as memórias é como assistir a um filme e me faz bem rever as cenas dos bons momentos e lembrar que as etapas difíceis passaram e superei todas elas. É algo que gosto de fazer também a cada aniversário, mas a perspectiva aqui é um tanto diferente. Me atenho a como atravessei cada etapa do existir enquanto estrangeira em um país que não é o meu de origem. Segui na França ao me despedir de Montbéliard e ir morar em Annecy, e com isso comemorei dois anos no País dos Croissants no dia 29 de agosto de 2019. Agora preciso ajustar minha narrativa e ainda não decidi se comemorarei meu aniversário de X Anos na Europa ou X Anos Que Deixei o Brasil. Aceito sugestões. Cheguei na Holanda em dezembro do ano passado, e com isso meu terceiro ano fora do Brasil foi celebrado em território laranja. O mesmo 29 de agosto, um mês atrás, veio sem nenhuma inspiração para fazer minha crônica de mais uma ano morando no estrangeiro.

Queria um registro de qualquer forma pois é difícil deixar algo de tamanha importância para mim passar em branco. Tentei pensar em diversas formas de começar este texto e me peguei travada, sem saber qual caminho percorrer. Ainda é difícil falar sobre assuntos tão delicados, dar nome aos incômodos e assumir coisas das quais não me orgulho. Tinha muito a contar ao completar dois anos de França, tenho pouco a dizer sobre meu quase um ano de Holanda. Pode-se dizer que não houve tempo para viver a realidade deste novo país que só sei chamar de lar de um jeito meio torto.

Antes de termos a imposição do isolamento social em um contexto de pandemia, ainda nos meus primeiros seis meses de França entre 2017 e 2018, senti o quanto manter contato à distância é complicado, seja porque as pessoas gerenciam mal a ausência física, seja pelo fuso horário que nem sempre ajuda. Foi preciso velar algumas amizades. E embora tenha doído tentei me colocar no lugar destas pessoas algumas vezes. Estou longe de me encaixar nisto que as pessoas definem como mulherão da porra, não sou um exemplo a ser seguido. Levo uma vida simples e sou ordinária até demais. Mas sei também o quanto é fácil associar o “morar no exterior” a uma vida perfeita. E algumas pessoas sentem raiva ao ver as outras indo viver essa tal vida perfeita no estrangeiro. Porque sair do Brasil parece uma solução mágica. Ainda mais se você vai para um país de primeiro mundo. É mais seguro, de fato. Mas existe essa ideia de que tudo é mais cômodo nestes países: a comida é mais barata, a cultura é acessível a todos, o transporte público funciona. A lista é longa. Para muita gente essas mil vantagens são suficientes para silenciar o fato de que você se muda sem conhecer ninguém, sem saber muito bem as regras do local e longe da sua família. Em tempos de superexposição nas redes sociais é ainda mais fácil cair nesta ilusão ao ver um feed cheio de fotos de lugares bonitos. Sustentar essa narrativa é tão cômodo quanto a reação de muitos estrangeiros quando me queixava de saudade: se estou tão infeliz, porque não volto para o meu país?

Apesar de toda carga negativa e de inúmeras cagações de regra, há luz no fim do túnel. Tanto na França quanto na Holanda fui bem amparada emocionalmente. Reforcei minhas ligações com muitas pessoas (à distância!), tive e tenho apoio dos meus pais e de amigos mais próximos. Sou grata por ter uma rede de apoio tão carinhosa e sinto uma falta absurda de tê-los todos fisicamente por perto. Neste sentido tenho tanta sorte que agora também posso contar com um parceiro que me dá suporte emocional e financeiro, um cara maravilhoso que está pronto a me ajudar independente do teor das minhas crises. Este deve ter sido um dos pontos altos do ano que passou. Ter o apoio dessas pessoas foi fundamental para não largar mão de tudo e correr de volta para o Brasil.

Posso afirmar que em termos de receptividade a Holanda é mais acolhedora que a França. Pode ser uma reação ao fato deles andarem de bicicleta o tempo inteiro, o que permite manter a produção de serotonina sempre ativa, mas eles parecem mais felizes e dispostos. É tudo bem organizado e as pessoas me parecem ter um bom equilíbrio entre trabalho e vida pessoal. Mas vivo de suposições desde a minha chegada. Cheguei no mês mais morto do ano, no auê das preparações para Natal e Ano Novo, um período onde ninguém está muito preocupado com trabalho (tampouco em contratar gente nova), faz um frio do caramba e chove muito e ninguém quer ficar na rua. As pessoas contam os segundos para tirar férias e curtir um jantar gostoso entre família. Já sabia que minha integração só começaria a acontecer em janeiro. Assim foi. Em um primeiro momento acabei convivendo com colegas de trabalho do meu parceiro e, em paralelo, me inscrevi no Meetup e comecei a procurar eventos relacionados aos temas que eu gosto. Porque eu estava rodeada de pessoas interessantes, mas queria sair um pouco do núcleo deles, que é bem internacional, e conhecer pessoas que chegaram aqui por outros meios e motivos. Existe também o detalhe de que cheguei sem saber uma palavra sequer de holandês (eu não sabia nem pronunciar o nome da cidade onde ia morar), e meu inglês, que ficou bem adormecido ao longo de dois anos na França, estava bem enferrujado. Colocar na minha cabeça que uma língua germânica não vai achar lugar fácil no meu cérebro tão habituado a línguas latinas é outro desafio, pois nem sempre consigo aceitar a lentidão do processo. Tudo isso para dizer que tardei a sentir o impacto tomando conta, porém uns tantos pequenos elementos viraram pedra no meu sapato e ficou cada vez mais difícil caminhar com alguma destreza. Nos meus primeiros meses na Holanda não imaginei que seria tão difícil conseguir um trabalho.

Antes de sair do Brasil tinha dificuldades em entender o que levava meus amigos brasileiros a aceitarem trabalhos que não tinham nada a ver com eles no exterior. Ou porque eles preferiam manter um trabalho no Brasil enquanto moravam em outro país, mesmo sabendo que a conversão das moedas não compensaria tanto assim. Na minha cabeça a conta não fechava, me perguntava se valeria mesmo a pena abrir mão de ter uma carreira ascendente no Brasil só pelo gosto de ter um salário mínimo em euros. Naquela época eu era total sem percepção da realidade e alimentei uma ilusão na qual eu conseguiria trilhar um caminho bacana e construir uma carreira brilhante em território estrangeiro, fosse na área de comunicação ou como gerente de projetos digitais.

Você se lembra dos pombos? Como mencionei acima, eles se transformaram em gaivota e fizeram questão de cagar em todas as minhas ilusões e expectativas. O tal emprego nunca veio, tampouco as reações positivas ao meu CV. Até rolaram algumas poucas entrevistas, que inclusive renderiam um post à parte dada a surrealidade dos fatos, mas pouco avançou ao longo destes últimos 10 (!!) meses. É muito frustrante estar sem ocupação em um país que você conhece mal, sentindo teu inglês enferrujado e apanhando para pronunciar decentemente algumas cinco frases em holandês. A exaustão psicológica se transformou em algo físico e a cada dia desperto mais nervosa e mais desesperada. Porque sou uma pessoa sem habilidade alguma para ter sossego. Queria usar este tempo livre para ver umas séries e fazer uns cursos online de graça. Mas me pego tomada de culpa em estar fazendo algo não relacionado a mandar um CV ou escrever uma carta de motivação.

Senti muita frustração em diversos momentos deste terceiro ano de Europa. Como se os dois anos anteriores tivessem sido desperdiçados com um investimento que não me ajudou em nada no presente. Ainda tenho muito a aprender sobre ser gentil comigo mesma ao longo deste processo de adaptação. Quando a angústia me dói mais que de costume, me esforço para respeitar também o momento que estamos vivendo. Todo mundo está em busca de um pouco de serenidade e de meios de se reinventar e existir no contexto de uma pandemia. Comigo não seria diferente.

É fato, ando capengando e ainda não descobri um método eficaz para fugir das gaivotas. Porém este terceiro ano me fez enxergar o quanto sou forte e fui longe sim. Interrompi minha trajetória profissional por um período, é verdade. Mas aprendi muito e me vi crescer mais resistente em lugares que nunca vão me acolher como o meu país de origem, sem ter ideia de quando poderei ver minha família e amigos mais próximos outra vez e abraçando um caminho cada vez mais incerto. Carrego esse sentimento com orgulho suficiente para balancear a perspectiva pessimista e não me deixar abalar pelos obstáculos. O que é meu tá guardado, como costumam dizer sempre lá na minha terra.