Existe uma aura poética na sequência onde Gene Kelly, com um sorriso no rosto, pula de um canto ao outro cantarolando Singing in the rain. Trajando terno e com um guarda-chuva preto a tiracolo, ele dispensa o táxi e usa o objeto como parte de sua performance. Ele parece genuinamente feliz, celebrando uma alegria gloriosa e quase tirando sarro da chuva. A cena é tão famosa que muita gente a conhece sem nunca ter assistido ao filme homônimo. Gostando de musicais ou não, é difícil não se contagiar com tamanha felicidade. Dá vontade de fazer igual.
Hoje, ao me lembrar desta cena, penso no quanto só estando muito chapado de endorfina para conseguir mandar a chuva às cucuias e se curtir tanto. Chuva, para mim, é sinônimo de incômodo. Detesto a sensação de caminhar com as roupas encharcadas e me enerva ainda mais não poder usar óculos por conta da invasão de pequenas gotículas de água. Se tem ventania e frio, o nervoso aumenta.
Penso muito na biografia de minhas chuvas. Quando ainda morava em Campo Grande, cidade natal e berço dos meus anos jovens, havia certo teor poético. Já cheguei a pegar chuva de propósito, pois queria sentir o êxtase que lia nos livros ou observava nos filmes. Nenhum xodó veio me beijar ao som de Hear you me, portanto embora vivesse uma ficção impecável em minha mente, o cenário se limitava a uma adolescente portando uniforme escolar e toda desgastada pela chuva. Ser carregada pelos meus pais e poder usar carro para tudo em uma cidade pequena garantia certos privilégios.
Já em São Paulo, ganharam um novo tom melancólico. Ficava pensativa, se coubesse ao momento preparava um chá e curtia o som da chuva enquanto escrevia ou lia. Na capital paulista, todavia, o carro deixou de compor a paisagem pessoal, o que me expunha a eventuais tempestades no caminho de volta da faculdade ou do trabalho. Tomei cada banho! Sem contar no número de vezes em que um trajeto de meia hora de ônibus se transformava em quase duas horas parada no trânsito.
Na França a experiência era tal qual a paulistana. O romantismo morrera anos antes desta mudança, e não seria o cheiro de baguete recém-saída do forno que melhoraria as condições. Chegava a ser pior, pois no inverno a chuva também se transformava em tempestade de neve e tudo ficava ainda mais escorregadio.
A temporada atual é ambientada na Holanda, onde mais chove do que faz sol. Enquanto cobria a cabeça com o capuz da capa de chuva esta manhã, examinei brevemente a vida acontecendo inundada de preguiça à minha frente. A chuva é intrínseca ao país e os locais nascem sabendo disso. Um aguaceiro não impede o holandês de sair de casa. Afinal, as crianças precisam ir à escola, os pais ao trabalho, e mesmo um eventual restaurante entre amigos não será cancelado por conta das condições climáticas. O número de pessoas que vejo diariamente pedalando, ou mesmo pedalando e carregando sacolas debaixo de chuva não tá na história.
Quiçá sinto uma ponta de inveja de tamanha indiferença. Para mim, é preciso estar feliz demais da conta, tal qual o personagem de Gene Kelly em Singing in the rain, para ficar embasbacado e curtir como se fosse algo tão digno de apreciação.
Atingir esta familiaridade talvez até ajudaria a rever a chuva com bons olhos. Assim como fiz esta manhã, ao ser surpreendida por Irene, de Rodrigo Amarante, que tocava em uma de minhas livrarias favoritas. Tomei meu café revivendo memórias enquanto espreitando o vento e a chuva causando na calçada. Fico me perguntando se em algum momento a chave há de virar e minha trajetória com as chuvas seguirá seu caminho rumo a um final feliz. Será que uma hora deixarei de me importar e a encararei como mero detalhe?
Enquanto a bandeira branca entre a chuva e mim não chega, encaro o turno noturno do trabalho pensando no quanto gostaria de estar em um cenário confortável agora. Algo digno de pinterest, debaixo de uma coberta quentinha, com um livro, tomando um chá, e podendo até ter um som de tempestade de trilha sonora.
