No meio da viagem no tempo tinha um coelho esquisito

Passei anos resistindo ao ato de rever filmes, tudo por pura preguiça. Nada de novo sob o sol, como diria Caetano Veloso. Até juntar meus trapinhos com uma pessoa que adora rever seus filmes prediletos E ficar presa em uma pandemia eterna algum tempo mais tarde. De tanto repetir os dias me apeteceu a ideia de revisitar algumas joias da minha adolescência e olha só, quem diria, tenho achado a experiência maravilhosa. Alguns destes títulos ainda tenho em DVD, perdidos em alguma caixa na casa dos meus pais, mas como eles seguem a um oceano de distância me viro como posso com os serviços de streaming. Uma tarefa por vezes hercúlea. Um lado meu quer muito dar uma chance às novas produções, outro prefere o conforto de revisitar lugares conhecidos.

Sendo deveras sincera, dá para sentir que a prioridade do momento é financiar um monte de filmes sem alma. Neste caso fica mais fácil partir para uma obra que já assisti algumas vezes, ou que foi lançada há bastante tempo e ainda não tive ocasião de assistir. Quiçá o problema more em mim, e meu brilho nos olhos se dissipou de tanto ler notícias, minando também minha capacidade de me envolver o suficiente com obras ficcionais inéditas.

Tive também uma influência externa: o podcast Segunda Mão, de Jessica Correa e Thiago Guimarães. Me enchi de doses de nostalgia enquanto eles papeavam sobre alguns clássicos dos anos 2000, até chegar no episódio sobre Donnie Darko (2001, direção de Richard Kelly), que me arrebatou sem dó nem piedade.

Não me sinto apta a dizer do que se trata sem dar spoilers. Isso me levou a questionar o que seria um spoiler de Donnie Darko e se existe uma explicação lógica para o filme. Há muito conteúdo interessante nos textos e vídeos que buscam explicar o final, mas quando uma história gira em torno de conceitos sobre viagem no tempo e tem uma pegada de ficção científica, seria um erro se ater tanto aos detalhes. Minha expectativa ao rever Donnie Darko era embarcar na brisa do filme e deixar espaço para criar umas teorias malucas na minha cabeça.

O longa foi lançado nos anos 2000, mas se passa nos anos 80. Tem uma ambientação meio cafona, típica do período, e uma trilha sonora isenta de defeitos. Nasci em 91, então não posso dizer que vivi e tenho lembranças da década de 1980. Mas vi muitos filmes e videoclipes deste período e posso dizer que Donnie não deixa a desejar e passa muito bem como uma história que poderia ter acontecido naquele período. Até os cortes de cabelo e penteados reforçam o cenário! A sequência de abertura ao som de The Killing Moon me deixou arrepiada. Nos primeiros minutos do longa já deu para sentir que aquela seria a minha viagem no tempo, com destino final a minha pré-adolescência.

O protagonista, que dá nome ao filme, toma remédios e faz acompanhamento com uma psicóloga. Não sabemos exatamente o que ele tem, embora haja uma leve menção a uma possível esquizofrenia. Ele possui uma aura melancólica, mas é um jovem desbocado. Dando um pouco mais de contexto, ele ainda está na escola. Aquele típico cenário de high schools americanas, onde meninos e meninas tidos como esquisitos sofrem bullying e os rapazes ‘descolados’ (estou usando gírias de velhos propositalmente) se sentem os donos do pedaço (eu avisei). Os docentes parecem advir de meios conservadores, e reproduzem isso no comportamento escolar. Donnie está cagando para todos eles, e rebate adultos e adolescentes quando o convém.

Conforme a história progride, fica evidente o quanto todo mundo está, de alguma forma, perdido ou angustiado. Durante diversas passagens senti vontade de dar um abraço ou um chacoalhão em alguns personagens, esquecendo até de me questionar sobre o que raios este cara fantasiado de coelho pretende fazer. Sentir a melancolia destes seres perdidos bateu com força a ponto de não me parecer relevante questionar se o coelho era real ou uma mera projeção da cabeça afetada de Donnie. A tal velha maluca, por sinal, me deixou com o coração apertado na cena em que ela se aproxima de Donnie e anunciar que todo ser vivo neste planeta morre sozinho. Coloquei a tradução em itálico porque o print está com legenda em holandês, eu sei, faço uns esforços doidos nesta vida às vezes (mas isso é assunto para outro post).

Enquanto adolescente, devo ter falado sobre a genialidade deste filme a todos que me perguntassem, ou o quanto me impressionei com a forma como o conceito de viagem no tempo aparece tão carregado de melancolia. Revendo agora, aos 30, quase não abri os olhos para o aspecto e ficção científica do negócio. Acabei o longa triste e abatida. Por mais esquisito que Donnie seja, me apeguei e sofri junto. Por mais debochado e nem aí que ele aparente ser, ele sente demais o quanto o mundo o afeta, e reforça o quanto a transição da adolescência para a vida adulta pode doer. Dói tanto que talvez valha o sacrifício de dar fim à própria vida para não precisar ultrapassar esta passagem até o ponto final.

Donnie ainda consegue expressar muito do que lhe congestiona o peito, enquanto acompanhamos os adultos engolindo o seco e silenciando, muitas vezes, o que poderiam expressar para dar fim a diversos pequenos problemas. Dentro do núcleo adulto dá para sentir o quanto pequenos conflitos internos não resolvidos se acumulam a ponto de te deixar sem alternativas além de dar um grito alto que talvez não resolva o problema, mas ajuda a aliviar todas aquelas dores internas. Drew Barrymore, maravilhosa, eu gritei junto com você nesta sequência:

Depois de ficar em frangalhos com minha experiência Donnie Darko, precisava de um pouco de sol. Por algum motivo obscuro essa história de viajar no tempo sem um mega fundo científico me levou a De Repente 30 (2004, de Gary Winick).

Vamos voltar aos meus primeiros anos de adolescência. Até meus 13 anos assistia filmes por diversão. Tinha minhas preferências, é claro, só o dono da única locadora de Cassilândia sabe a quantidade de fitas VHS com musicais da Disney que devolvi prontamente rebobinadas. Entretanto na transição dos 13 aos 14 já morava na capital, onde o acesso a cultura era maior e passei a encarar o cinema com outros olhos. Na época, passei tardes inteiras trocando ideais e referências com os atendentes da finada MB locadora. Era bom demais estudar só pela manhã e ter tempo livre de sobra, inclusive saudades.

Graças a eles assisti a uma caralhada de filmes, digamos, conceituais. Era uma fase de descoberta, talvez tenha visto muita coisa que na época me pareceu cabeçuda demais e não entendi nada (oi, Lynch). Porém descobri o trabalho de diversos diretores que encontraram um lugar especial no meu coração e desde então não deixei de acompanhá-los. Foi uma fase importante, é fato. E se Donnie Darko entrou no hall de preciosidades cinematográficas, De Repente 30 cairia por terra nos meus critérios. Mas me encontrava em transição, e minha personalidade ainda confusa deixava passar muitos filmes considerados toscos pelos intelectuais. Coincidentemente, o longa foi lançado quando eu também tinha 13 anos como a protagonista, Jenna, e me achava madura demais para a minha idade. Passava horas confabulando sobre o meu futuro brilhante como escritora, mentalizando thirty, flirty, and thriving com a mesma veemência de Jenna.

Tantos anos mais tarde com 30 anos recém-completos, estou bem longe de qualquer prosperidade, e embora tenha encontrado um rapaz muito especial e esteja comprometida, se houve algo que quase não fiz ao longo destas três décadas de existência foi flertar. Quiçá por não ter passado nem perto desta glória pela qual Jenna tanto aspirava, me pareceu simbólico pegar o filme para rever agora, nesta última curva antes dos 30.

Ouso dizer: De repente 30 é uma explosão de amorzinho e felicidade se colocado ao lado de Donnie Darko. Porém Jenna precisa passar por um purgatório semelhante ao de Donnie durante o colégio. No alto dos meus vinte e tantos, agora consigo olhar e achar ridículo esse esforço débil que muitas pessoas como eu empreendiam para fazer parte de algo com o qual, na maior parte do tempo, tampouco nos identificávamos. Algo em minha mente dizia que se eu me desse bem e, com alguma sorte, se fizesse parte do grupo das meninas populares, ganharia uma proteção automática anti-julgamentos, ignorando por completo o fato de que eu não tinha cacife para arcar com a realidade daquelas moças. Era branca desbotada feito um palmito como elas, um senhor privilégio, porém não tinha cabelos lisos, era rechonchuda, não gostava de fazer as unhas, andava com roupas largadas (uma taurina apaixonada pelo conforto desde os primórdios) e não me sentia nada pronta para FLERTAR. Preferia esconder meu rosto atrás de um livro a encarar todos os possíveis julgamentos e testes sociais que me seriam colocados a prova.

Jenna também queria ser popular e aceita e achava um rapaz bonito só porque enfiaram em sua cabeça que ele era charmoso. Por não alcançar este patamar e de tanto se esforçar sem sucesso algum, seu escape passa a ser este sonho de ser adulta. Com 30 anos, sedutora e próspera. Tudo isso para viajar no tempo, desembarcar nos 30 e perceber o quanto as nuvens carregadas de tempestade encontram seu caminho dos 13 aos 30 sem muito esforço. Os tão sonhados 30 anos carregam suas dores e nem tudo são flores como a inocente mente imaginativa de Jenna esperava.


Impossível ignorar o fator comédia romântica da trama. Ela gira em torno da ideia de valorizar os pormenores de cada etapa das nossas vidas, de não tentar acelerar os processos e nunca fechar os olhos para quem te demonstra afeto em detrimento a um mero desejo de validação social. O final é feliz e ensolarado, diferente de Donnie Darko, mas esses tapas na cara da vida adulta doeram com mais força agora que me vejo na outra extremidade do título do filme. 

Ser adulto significa assumir uma porrada de responsabilidades, quando lá no fundo nós só queríamos sentar num cantinho e pedir para alguém resolver as coisas por nós. E este foi de longe o fator que mais mexeu comigo ao rever o filme. Embora não viaje no tempo, às vezes tenho a sensação de ter dormido com treze anos e acordado no meu corpo com trinta. Tudo isso pois em diversas ocasiões me senti uma impostora ao tentar agir como uma adulta, como se nunca tivesse estado pronta de verdade para encarar este papel. Sabe quando você assina um documento importante ou assume um novo cargo na empresa? E bate aquela sensação de “como é que fui parar aqui, eu só tenho 13 anos”? Pois então.

Sempre me emociono ao ouvir Vienna, de Billy Joel, e sem nenhuma surpresa chorei copiosamente com a sequência do filme, da qual já nem me lembrava mais. Slow down you crazy child, you’re so ambitious for a juvenile. But then if you’re so smart tell me, why are you still so afraid? A letra inteira é aquele chacoalhão delicado que nos faz mandar o pé no freio e repensar esse ritmo frenético no qual nos colocamos, em uma tentativa por vezes difícil demais de deixar certos processos se darem no seu tempo.

Com trinta anos recém-completos enfim tomei consciência deste fato, e minha meta é colocá-lo em prático. Afinal, é normal sentir medo de tomar decisões importantes e fazer as coisas por nossa própria conta. Posso dizer por experiência própria: mesmo quando era uma pessoa fitness, era difícil levantar peso sem técnica, sozinha. Completar um número x de repetições sem fazer careta? Impossível. Dói mesmo, e carregar estes pesos da vida adulta é natural. Só não pode se transformar em um freio que nos impede de avançar.

Meu reencontro com Jenna e Donnie foi um lembrete sobre a importância de respeitar – e muitas vezes desacelerar – o processo. E dar mais espaço às emoções. Pois sentir é um negócio ridículo mesmo, e a gente precisa se expor a esses papelões para conseguir se ouvir melhor. Conquistar nossos jovens interiores, fazer as pazes para criar uma estrutura resistente, forte, que usa a própria vulnerabilidade para crescer e nos tornarmos adultos funcionais (e não muito perturbados, diga-se de passagem).  

Assistindo: Le Père Noel est une ordure, de Jean-Marie Poiré

Eu me propus a falar mais sobre livros, filmes e músicas neste espaço. Para obter algum progresso, resolvi me deixar livre para comentar conforme a necessidade. Os posts podem ser curtinhos, bem no modo “comentário breve para não me esquecer”, ou podem render uma reflexão mais demorada. Explico de antemão para evitar expectativas. Ao mesmo tempo, reforço o propósito inicial dos blogs, lá da época em que surgiram – fazer disso aqui um diário virtual onde nos damos liberdade para falar sobre o que der na telha e conforme nossa necessidade. Vamos lá?

Todo o charme do cinema francês

É controverso amar o cinema francês. De minha parte, sempre tive um interesse. É um jeito peculiar de filmar e contar histórias. Impossível ignorar também o legado das produções francesas para a sétima arte. Eles merecem certas honrarias, é fato. Na minha fase mais pretensiosa da adolescência rasgava elogios e declarava meu amor pela Nouvelle Vague aos quatro ventos, enchia a boca para falar sobre as nuances percebidas em cada título de Godard que havia conferido. Este interesse inicial evoluiu para um olhar mais atento a cada nova obra francesa em cartaz. As produções da França acabavam me sendo atribuídas quando escrevia críticas, e, naquela ocasião, acabei assistindo muitas comédias. O humor francês é um tanto peculiar, e me intrigava o quanto boa parte das comédias não eram nada engraçadas.

Fui entender melhor essa pegada depois de conviver de perto com os franceses. Quando me mudei para Montbéliard, na França, já tinha minhas preferências cinematográficas definidas e minha curiosidade só cresceu com o tempo. Segui assistindo de um tudo, mas notei que me faltavam algumas referências. Muito da cultura francesa deriva de filmes clássicos para eles. Assim como nós temos nossas piadas internas e expressões que derivam de títulos da Sessão da Tarde. Para preencher essa lacuna e sabendo que meu parceiro gosta de rever filmes, pedi a ele que me apresentasse alguns destes clássicos. Ri sem respeito algum de Le Dîner des Cons, de Francis Veber, e de La Cité de la Peur, de Alain Berbérian. O terceiro da fila, Le père Noel est une Ordure, de Jean-Maarie Poiré, chegou com menos força e me deixou com sentimentos confusos.

Sucesso absoluto na tradução do título

Conforme mencionei, o humor francês é peculiar. Le Dîner des Cons e La Cité de la Peur são cheios de sacadas geniais, mas possuem enredos toscos de propósito. As situações são ridículas e absurdas, mas coerentes com a zona a que se propõem. Le père Noel est une Ordure começa na mesma linha e tinha tudo para me fazer chorar de rir como os outros dois, mas acabou me incomodando com algumas questões. O protagonista se veste de Papai Noel para distribuir panfletos em uma região bem movimentada de Paris, e acaba mantendo o traje em todas as sequências. Como o título indica, é um picareta, e isso é posto em evidência ao longo do narrativa. Ele vai crescendo em picaretismo. E por isso a tradução do título em português tem uma sacada genial. Se traduzirmos ao pé da letra, o título seria “O Papai Noel é um Lixo”. Não deixa de ser verdade, mas a versão brasileira é mil vezes mais coerente com a proposta.

Pois falemos sobre o longa

O longa é politicamente incorreto e narra uma sequência de absurdos. Félix, o tal Papai Noel picareta, fica entre idas e vindas com sua companheira, Josette. Ele usa de suas picaretagens para conseguir comida e algum dinheiro, pois vive em um barraco com seus coelhos (!). Por intermédio de Josette, conhecemos dois funcionários de uma espécie de CVV francês, Thérèse e Pierre. A coordenadora deles, Marie-Ange, desencadeia uma das intrigas principais da trama quando, na véspera do Natal, despede-se de Thérèse e fica presa no elevador ao tentar partir.

O enredo acaba sendo sobre como um contratempo pode puxar outro e criar uma espiral infinita de desgraças. E o cômico dele é ingrato, as falas não perdoam. Perdi a conta do número de vezes em que repeti “eles não vão fazer isso”, e fizeram. Em uma das passagens Pierre “defende” Thérèse dizendo que ela não é feia, só possui um físico difícil. Essa citação diz muito sobre o tom do filme.

O meu incômodo veio na personagem de Zadko, julgado sem respeito algum. Tirar sarro do sotaque, mesmo? Idem para Katia, um retrato extremamente homofóbico de uma mulher trans. A proposta, como o próprio título anuncia, é abusar do humor negro e colocar em evidência o quão absurdo (e podre, diga-se de passagem) o ser humano pode ser. Daí vejo o ano de lançamento: 1982. Posto o contexto do período fica mais fácil abstrair alguns aspectos. Soa até ousado para o período, dado o teor das piadas. Também levo em consideração o fato de ser uma releitura de peça de teatro. Não deixa de ser uma adaptação bem sucedida se levarmos em consideração que nem sempre é fácil transport a linguagem teatral para a sétima arte.

Gostei com ressalvas. Me fez rir e me deixou nostálgica dos primeiros dias morando na França, quando ainda me chocada com alguns absurdos da cultura local. Se você tem curiosidade em conhecer mais sobre a base da comédia no cinema francês, pode ser uma boa pedida.

Nota: 5/10

On the rocks, de Sofia Coppola

Envelhecer dificultou o processo de remontar minhas memórias com precisão. Me situar na passagem do tempo passou a ser um tanto desafiador, sobretudo agora, estando bem próxima dos 30. Apesar das imprecisões, tenho lembranças de ter adentrado em uma das fases mais chatas críticas da minha adolescência na época em que assisti Lost in Translation. Foi meu primeiro filme de Sofia Coppola e, enquanto adolescente deslumbrada que descobre a existência do cinema para além dos filmes da Disney e das comédias pastelão, foi um marco significativo. Fiquei encantada com o jeito de filmar de Sofia, os enquadramentos, a delicadeza da amizade estabelecida pelos protagonistas, o quão mágico o Japão me pareceu, o quanto a diretora exprimia sem precisar dizer muito. Aquilo me fascinou e logo fui atrás de The Virgin Suicides e Marie Antoinette, que havia estreado há pouco. Na minha perspectiva jovem dava para sentir o quanto ela se colocava implicitamente no enredo. Transformou-se em uma grande referência para mim. Achava potente esse jeito de deixar escapar tanto sobre si ao contar uma história alheia. Hoje, quase quinze anos mais tarde, fui assistir a nova produção da Sofia, On the rocks, e saí do cinema com uma impressão diferente. Ficou uma sensação de pressa, algo tão atípico para quem se criou na contemplação Coppoliana (sim, eu inventei este termo agora).

A trama é simples: Laura (Rashida Jones) vive em Nova Iorque com o marido, Dean (Marlon Wayans), e as duas filhas pequenas. Ela é escritora e trabalha de casa, enquanto ele mantém uma agenda cheia trabalhando para uma start-up em ascensão. Laura começa a suspeitar que ele tem um caso com uma de suas colegas de trabalho e essa desconfiança aflora no momento em que seu pai – descrito inclusive pela diretora como um playboy, Felix (Bill Murray), reaparece depois de uma temporada ausente.

Aviso aos navegantes – embora não discorra sobre o desfecho, devo comentar detalhes do enredo que podem ser entendidos como spoilers.

Diferente de tudo realizado por Sofia até agora, On the rocks é um filme mais “ágil”, sem aquelas longas sequências contemplativas que são sua marca registrada. Não há momentos icônicos e memoráveis, nada que te marque e te faça repensar por horas depois. Não é a intenção. Para mim ele foi como um desses drinks leves que a gente pode apreciar com moderação e que nos deixa meio alegrinha quando acaba. É descompromissado, feito para você se desconectar por alguns momentos da realidade e rir um pouco dos absurdos ditos por Felix e para eventualmente se identificar com as nóias de Laura.

Depois de apontar defeitos e dizer que não há nada de memorável neste filme, você deve estar perguntando se eu gostei mesmo (ou porquê raios resolvi escrever sobre). Vou te poupar de enrolações desnecessárias. A resposta é sim. Em momentos de tanto caos e incertitude, a verdade é que eu precisava de um filme assim. Os desgraçamentos mentais que a Sofia me propôs no passado foram violentos, então confesso que gostei da possibilidade de ser poupada e ter um breve afago vindo dela.

Em contraste com a carreira bem sucedida de Dean, Laura está no meio de um bloqueio criativo. Enquanto pessoa que escreve posso afirmar o quanto este bloqueio alimenta toda sorte de paranoia. Incapaz de sentar a bunda na cadeira e escrever uma mínima frase que faça sentido, começo a pensar nos problemas que tenho enfrentado e em todas as coisas que preciso resolver ainda esta semana. Sinto a concentração flutuar para bem longe, potencializando meu jeito desastrado de lidar com a vida. Essa sensação é muito bem retratada por Rashida Jones. Diferente de mim, ela vive esse conflito enquanto cuida das duas filhas pequenas. A estafa mental com o cuidado com as meninas recebe certos alívios cômicos em especial nas sequências onde sua ‘amiga’ Vanessa (Jenny Slate) conta suas aventuras nos corredores da escola. Ou em uma das sequências em que Laura encontra seu pai ensinando as meninas a blefar. Neste contexto é fácil imaginar como Laura alimenta desconfianças sobre a fidelidade do marido. Seu pai, com tempo livre de sobra, embarca nesta suspeita e os dois passam a vigiar as ações de Dean.

Adoro Murray no papel de tiozão, cheio de tiradas ridículas e baratas e colocações machistas daquelas que nos fazem virar os olhos de tanta vergonha alheia. Cá entre nós, em diversos momentos me fez pensar no meu pai e em todas suas colocações inapropriadas. Embora seja algo que dê nos nossos nervos na vida real, no filme soa engraçado e traz um certo alívio cômico, graças à química e à leveza da interação dele com Jones. É como se eles de fato fossem pai e filha. Esta é, por sinal, a proposta do filme: construir uma narrativa sobre a paternidade. Essa intenção é anunciada logo no início, quando ouvimos uma voz masculina dizer, no escuro “and remember: don’t give your heart to any boys. You’re mine, until you get married. Then you’re still mine”. É sobre essa proteção paternal que pode até ser doentia, mas aqui é encarada com leveza e em tom de comédia. Sofia explora um pouquinho sobre como essa relação evolui ao longo dos anos e o que podemos fazer para manter um laço afetivo de forma saudável.

Existe muito da Sofia das antigas por aqui. Temos mulheres solitárias em seus conflitos internos, uma Nova Iorque cinza e melancólica que contrasta com o tom de comédia do filme e personagens que levamos conosco por um tempo após o fim da projeção. Embora o foco seja a relação entre pai e filha, existe uma vibe meio Lost in Translation, e este foi um dos fatos que me fez ter tanto afeto pelo filme. Me deixou nostálgica da filmografia de Sofia e com saudade do meu pai, que graças a este micróbio desgraçado já não vejo há mais de um ano.

É isso. Não há nenhuma reflexão, tampouco uma lição de moral. Isso pode soar frustrante para quem gosta da Sofia das antigas, mas minha dica é não se levar tão a sério. Ela segue presente em cada frame, porém com certo distanciamento e com uma nova roupagem. Como se anunciasse que agora tem maturidade cinematográfica suficiente pra fazer o que me entender, inclusive um trabalho que destoa de toda sua filmografia. A realidade anda difícil demais de digerir, nós merecemos um pouco de alívio cômico para apertar o botão off da realidade durante uma hora e meia de projeção.

Pessoas horríveis, o livro e a série

É difícil passar pela leitura de Pessoas Normais, de Sally Rooney, sem sentir muito. Sentimentos estes entendidos como negativos: raiva, indignação, frustração. Pode ser que você se identifique com os personagens, mas o risco de passar nervoso é o mesmo. Vi muitos amigos comentando sobre a obra, sobretudo pessoas com preferências literárias semelhantes às minhas. Mas o que me motivou a comprar e ler foi a capa. Fiquei intrigada com a associação que fiz entre o título e aquelas duas pessoas espremidas dentro de uma lata de sardinha. Palmas à ilustradora, que com uma imagem tão simples anunciou a essência do enredo. Rooney conta a história de Marianne e Connell, dois jovens que estudam no mesmo colégio no interior da Irlanda. Ela parte de um clichê bem conhecido – a moça é uma nerd sem amigos, ele faz parte do time de futebol e é bem popular. A história deles acaba se cruzando pois para além da escola, a mãe de Connell trabalha como faxineira na casa de Marianne.

Eles se envolvem, mas ninguém pode saber pois a popularidade de Connell seria ameaçada. Marianne se silencia, assumindo a postura do “isto não está me fazendo mal, não tem problema algum”. Um lugar comum entre os millennials – muita disposição para pegação, zero desenvoltura para assumir sentimentos. Existe essa ideia de ‘conforto’ no não dizer. Se você não manifesta verbalmente como se sente, é como se os sentimentos não existissem.

Como em todo bom enredo, ele é composto por diversas camadas e a primeira impressão é um tanto superficial. Como se fosse só mais uma história corriqueira de romance frustrado que se limitasse a discutir conflitos de comunicação. Conforme você adentra nas nuances da história, mais ela passa a levantar questionamentos – e sinto que a série foi muito benéfica neste aspecto. Todos os pontos que me pareceram meio soltos na obra foram bem explorados na adaptação televisiva.

Começo por Marianne. Ela tem uma personalidade forte, é firme em seus discursos impessoais. Uma pessoa que fala com propriedade sobre qualquer assunto que não seja relacionado a como ela se sente enquanto ser humano. Isso explica um pouco da minha impressão inicial, quando a vi como alguém introspectiva e só. Conforme a história avança as cicatrizes dela começam a se mostrar. Marianne nunca foi amparada por ninguém. Embora Rooney não dê muitos detalhes sobre o pai dela, sabemos que ele não é flor que se cheire. Tanto no livro quanto na série ele não dá o ar da graça em nenhum momento, mas fica implícito que a relação dele com a esposa, então viúva (o pai de Marianne faleceu quando ela tinha 13 anos) não era das melhores. Isso reflete, em certa medida, na forma como ela se ocupa dos filhos. Marianne é negligenciada a ponto de não ser defendida durante uma das discussões com o irmão, Alan. Ele tem um comportamento violento, tanto que acaba agredindo a irmã fisicamente em uma das sequências.

Marianne cresceu entre dois homens insolentes, então digamos que suas referências masculinas não eram das melhores. Nós vemos como ela preenche esse vazio com namorados lamentáveis e abusivos. O amor próprio mandou abraços para nossa protagonista. O fato de nunca ter sido protegida acaba refletindo também nas amizades. Uma vez que ela parte para Dublin, sua popularidade aumenta. Ela passa a frequentar pessoas com o mesmo padrão financeiro de sua família e no mesmo nível intelectual dela. Tudo aquilo que fazia dela a esquisita da escola veio a ser uma qualidade em seus anos universitários. Rise and shine, Marianne. Salvo que tudo que nos dói e não é tratado acaba ressurgindo uma hora ou outra. Sua vida é toda preenchida por superficialidades que escondem os problemas.

Corta para Connell. Enquanto adolescente, a popularidade na escola é tudo que ele tem. Ele não quer colocar essa fama em risco, pelo contrário. Quer aproveitar até onde pode, a ponto de silenciar seus desejos. Ele vive com a mãe, Lorraine, uma das melhores personagens desta história, por sinal. Eles fazem parte de uma classe menos abastada, ela é mãe solteira e trabalha fazendo faxina. Connell tem uma boa relação com ela, mas ainda é muito imaturo. E parece convicto de que sua popularidade o acompanhará para onde for. Percebemos que ele não é desrespeitoso com Marianne em nenhum momento, mas tampouco assume alguma responsabilidade. E é aí que as coisas se complicam. Ele não sabe mensurar o impacto de sua imaturidade até debandar para a capital e se ver tão perdido quanto a Marianne do colégio. Ele sente o gosto amargo de não conseguir constituir laços, de não conseguir se impor nesta sociedade cheia de pessoas ricas e ditas inteligentes demais. Acompanhar o processo dele ao tentar se impor e ter uma voz entre pessoas que nunca fizeram parte do seu círculo social é doloroso. Ele encontra meios de ‘existir’ neste contexto, e, embora não se sinta 100% confortável, passa a encarar a realidade com um pouco de leveza. Sobretudo depois do mochilão que ele faz e ao começar seu namoro com Helen.

Se Marianne e Connell não se tornam um casal, não é puramente por falta de comunicação, mas também pelo conflito social. Connell passa boa parte do enredo preso, sente culpa ao se ver com alguém que não possui as mesmas condições. Isso não é verbalizado em nenhum momento, mas acaba saltando nas entrelinhas. Embora pareça tolo se importar com um fator tão ‘banal’, acaba sendo uma forma de bloqueio. Esse impacto é evidenciado pelo encontro com Marianne em Dublin, que confirma a ideia construída por ele de que eles não fazem parte “do mesmo mundo”. Ela é o único lar que ele tem por ali, visto que eles carregam uma conexão longíqua e ao menos ela o conhece independentemente de qualquer estigma social. Ele não consegue abrir mão de sua vida anterior e culpabiliza ainda mais com a notícia da morte de um de seus amigos da escola mais para o fim do livro, que o encaminha para uma depressão e o faz trabalhar a aceitação de que talvez as coisas não estejam lá tão bem assim. E que por vezes é necessário parar e repensar a nossa lógica de vida para poder seguir em frente.

Marianne, por sua vez, tem sua revelação em meio a uma cena de abuso psicológico por parte do seu namorado que ela arranja durante uma temporada na Suécia. Ela tem uma iluminação e entende que não precisa se submeter a humilhação para ter uma migalha de amor, e neste momento ela passa a se questionar sobre como foi parar neste lugar. É um primeiro respiro para a personagem, que passa todo o romance emendando um namorado merda no outro. Mas ela ainda tem muito chão pela frente (quem nunca) e isto é posto à prova quando ela empreende uma nova etapa com Connell. Quando tudo parece se encaminhar para um relacionamento saudável entre ambos, quando eles enfim conseguem conversar como pessoas normais que assumem suas inseguranças, um deles precisa partir.

Embora tenha levantado muitos aspectos positivos, o livro me deixou um tanto decepcionada. Boa parte dos pontos que me deixaram reflexiva só vieram depois de assistir a série. Custei a me implicar na narrativa, que me pareceu um tanto vaga. Só conseguia sentir raiva, vontade de dar um chacoalhão nesse povo e mandar todo mundo pra terapia. Um lado meu dizia que este sim poderia ser um livro que dá voz a nossa geração, esse bando de gente que sofre pra dar nome ao que sente. É um retrato perfeito da agonia relacional dos millennials. Nesse sentido Rooney é maravilhosa, mas faltou alguma coisa que me cativasse de verdade. Essa ‘falta’ foi 100% preenchida pela série, que tapou todos os buracos que a obra havia deixado para mim. As atuações são incríveis, Daisy Edgar-Jones e Paul Mescal possuem uma química surreal e constroem uma Marianne e um Connell quase palpáveis. Tudo que faltou em emoção no livro, transbordou na série.

Independente de ter gostado mais da série que do livro, Pessoas Normais me marcou e considero como uma obra muito significativa e sintomática de nossos tempos. Um retrato delicado de como podemos soar banais na superfície e o quanto isso se afirma em uma geração tão dependente da imagem que passam nas redes sociais. Mas que no fundo somos todos seres complexos e cheios de questões que temos dificuldade em abordar e exteriorizar. Se você ainda está hesitante sobre ler ou assistir, te dou aqui um último empurrão para fazê-lo. Não é só mais um romancezinho.

(Gostaria de deixar um agradecimento especial ao Caio e ao Carlos, que levantaram pontos importantes da série comigo e me motivaram a escrever este texto!)

You were never really here (2017), de Lynne Ramsay

Lá pelos idos de 2010 minhas escolhas acadêmicas me levaram para São Paulo. Ainda tinha muito brilho no olhar, cheia de esperanças e perspectivas. Jurava que viveria de escrita um dia, e enquanto buscava minha voz na Faculdade de Jornalismo comecei a colaborar para um dos órgãos laboratoriais da instituição. O site de cultura geral – e se não me engano era este o nome, bem original – aceitava críticas, análises, ensaios, tudo que fosse texto relacionado à cultura. Como boa jovem adulta crescida na internet e oriunda de tempos onde tudo isso aqui era mato, eu já tinha um blog. Adorava resenhar tudo que lia e assistia, então aquele foi um caminho bem óbvio. O que eu não sabia é que eles tinham acesso à cabines de imprensa (sessões prévias fechadas à imprensa e que acontecem antes da estreia oficial dos filmes) e que eu acabaria resenhando, em grande maioria, filmes. O que começou como um exercício de reflexão e prática de escrita, terminou com quase cinco anos cobrindo cinema. 

No meio do confinamento me peguei relendo algumas das críticas e bateu aquela saudade. Era divertido ver o quanto a resenha fluía quando eu detestava um filme e o quanto quebrava a cabeça quando precisava escrever sobre um título que me deixou (quase literalmente) sem palavras. Todo o clima de estar em uma cabine de imprensa também era ótimo. Adorava a expectativa antes da projeção começar, de ficar sem jeito ao dizer ao assessor que não gostei do filme ao fim da sessão, e de poder conversar com tanta gente com bagagens tão diferentes da minha. Bons tempos.

Porém o blog está de volta, tenho este espaço livre para escrever sobre tudo e sobre nada. Enquanto vasculhava resenhas antigas notei que parei de escrever do nada. Não foi um processo, tampouco o fim de uma experiência profissional – pois havia este detalhe, escrevia por diversão, nunca foi um trabalho pago. Segui fazendo enquanto tive oportunidade, fosse escrevendo sobre filmes que paguei para ver ou quando conseguia encaixar alguma cabine nos meus horários livres (era raro, mas acontecia de marcarem aos fins de semana). A última data de fevereiro de 2016, e desde então nunca mais resenhei filmes. Se não me falha a memória fiz uma newsletter inspirada em Grave e outra em Frances Ha, mas foi tudo.

Bref, todo esse blá blá blá para dizer que vou resenhar filmes outra vez! Mas quero fazê-lo de forma mais descontraída, sem me ater ao estilo de análise que fazia antes. Quero tentar um formato mais leve, mais objetivo e mais emocional. Poisé. Talvez até acabe na linha dos dois textos citados anteriormente, de quando ainda escrevia newsletters.

Como não tenho objetivo de publicá-las enquanto jornalista, não vou me ater aos aspectos técnicos dos filmes, mas sim às minhas reações enquanto assistia. Será que dá pra chamar de resenha emocional? Ou Sentimental? Não sei qual dos dois soa mais cafona, mas enfim, vocês entenderam o espírito da coisa 🙂

C’est parti!

Digo que já desperdicei muitos filmes ao longo dos anos pelo simples fato de não estar no clima. Às vezes vou ao cinema “sem intenções”, escolho um título que me parece leve e acaba sendo complexo, e dependendo de como estou me sentindo no dia, isto pode ser um horror. Ou uma boa surpresa. Tenho preferência por filmes que me instiguem, que me façam pensar e não me entreguem tudo mastigadinho. Isso não me impede de assistir, tampouco de gostar do aposto, que fique claro. É só uma questão de gosto mesmo, e talvez até explique o fato de ser um tanto mais aberta aos filmes experimentais. Assisto sem grandes expectativas e respeitando a obra como o título propõe: é um experimento. Conhecendo um pouco o histórico de Lynne Ramsey, pensei se tratar de um filme mais experimental e foi assim que dei play em You were never really here.

Ele conta a história de um suposto veterano de guerra cheio de traumas que tenta resgatar uma garota, supostamente vítima de abuso sexual. Não ouso afirmar nada sobre o enredo pois não tenho certeza se de fato aconteceu ou se foi só uma alucinação do protagonista. Joe é interpretado por Joaquin Phoenix e nos primeiros minutos de filme senti uma energia de Joker pairando no ar, sobretudo durante o primeiro diálogo dele com a mãe. Se não me falha a memória as gravações de Joker devem ter começado pouco tempo depois do lançamento de You were never really here, e gosto muito do trabalho de Phoenix, era pouco provável que ele fosse me decepcionar. Ele logo se desvencilha de Joker e nos leva com ele a um delírio insano e cheio de lembranças ruins. O filme te dá um puta mal estar, em partes por te colocar por completo na pele do personagem, em partes pela agonia de não saber bem o que está acontecendo.

Conheci Lynne Ramsay com Precisamos falar sobre o Kevin, adaptação do livro homônimo de Lionel Shriver. Sendo um romance epistolar, fiquei ainda mais curiosa para saber como ela iria traduzir a obra ao cinema. O livro de Shriver, por sinal, me virou de ponta cabeça. Me deixou com um vazio imenso e um bloqueio para ler qualquer outra coisa na sequência. Ele é MUITO bom. Mesmo sendo uma ficção, foi a primeira vez que li algo com uma protagonista que não romantizasse a maternidade e falasse com tamanha intensidade sobre o desgosto de ser mãe. Rolou um misto de expectativa e medo com o que Ramsay faria? É certo que sim! Ainda mais tendo Tilda Swinton, Ezra Miller e John C. Reilly como protagonistas.

Pois sabe o mal estar de You were never really here? Ele permeia cada minuto de Kevin. Em termos visuais não há nada que te faça torcer o nariz, mas você fica com aquela sensação de ter algo preso na garganta, sabe? Um certo desconforto, aquela dor no peito que às vezes chega do nada e não conseguimos nomear. Conforme o filme avança há certos elementos que te fazem pensar que uma das peças vai se encaixar e você vai começar a ter algumas respostas, mas é mera ilusão. Um piscar de olhos e você passa de um sonho para um pesadelo e o teu desejo mais forte é fazer a Dorothy, abrir os olhos e sentir alívio ao entender que foi apenas mais um sonho ruim.

Falando assim parece que detestei, mas não é o caso. Inclusive um dos pontos que mais me cativou no longa foi o contraponto entre Joe e a garota loira que ele tenta salvar. Enquanto ele está em cena, tudo é apresentado em tons escuros e pesados, enquanto ela aparece como uma criatura onírica que parece iluminar o imaginário sombrio de Joe. Tudo isso acompanhado de uma contraditória leveza, atribuindo um estatuto quase etéreo à personagem. Em uma das sequências ela aparece ‘afundando’ na água com tamanha delicadeza que é como se fizesse parte daquele universo, uma espécie de pequena sereia de um anti-conto de fadas. Dado o teor onírico de sua presença, fica a sensação de que talvez ela nunca tenha estado de fato ali. Uma construção da mente perturbada de Joe para sair no tapa e derrubar os supostos pedófilos que ele pretende destruir.

Quando terminei Kevin fiquei na dúvida se havia gostado porque li o livro, se fez sentido para mim por já conhecer tão bem a história. Com You were never really here senti que Ramsey quis provocar e nos deixar com o incômodo e as incertezas em mãos. Como se ela gritasse “é pra ficar confusa mesmo, minha filha” durante os créditos.

Por último e nem por isso menos relevante, destaco que o longa é uma adaptação do livro homônimo de Jonathan Ames. Ele mesmo, aquele do call again, take me to Coney Island, take me on the train, o ex da Fiona Apple. Resta saber se o delírio é o mesmo de Kevin, mas esta leitura vai ficar para mais tarde.

Andanças #2 – Intermediário

O último andanças tá quase aniversariando, veja bem. Como é ter disciplina com projetos pessoais (tipo um blog e uma newsletter, por exemplo)? Me contem nos comentários, tudo serve de inspiração nessa vida.  Desta vez só voltei com o blog depois de ter pelo menos 4 posts prontos e pauta para outros 10 (obrigada, Nicas!). Talvez não seja o caso de perder a esperança tão cedo. Vou me basear em janeiro e fevereiro para fazer esta edição 🙂

Tô assistindo: É muito ruim oscilar, não é mesmo? Fiquei no maior fogo no rabo no em janeiro, promissora no papinho de ir ao cinema pelo menos uma vez por semana. Voltei para o ciclo de cansaço pós-firma e aos fins de semana sinto vontade de mofar no sofá. Tão grande a preguiça que a pessoa nem se mobilizar a colocar uma série ou filme no pc, um pequeno detalhe. Comecei Please like me e até agora achei meio…ok. Bom, são poucos episódios por temporada, não custa nada insistir mais um pouco. Em janeiro dei sorte e assisti muita coisa boa: Elle, La la land, Manchester á beira mar e Eu, Daniel Blake. Em fevereiro vi A Chegada e A Criada. Os melhores: Daniel Blake e A Chegada. Daniel é daqueles filmes para te incitar a ficar revoltado com o sistema e refletir um pouco sobre como o governo trata o cidadão. A Chegada fala sobre a beleza e o poder da linguagem e da comunicação. Tudo tão delicado e forte. Me marcou muito.

A linguagem é uma pele, já diria Barthes <3
A linguagem é uma pele, já diria Barthes ❤

Tô lendo: Resolvi me jogar em tudo que é contemporâneo e feminino. Reli o maravilhoso Teaching my mother how to give birth, de Warsan Shire, salt., de Nayyirah Waheed, Comme une envie de voir la mer, de Anne Loyer, Confissões do Crematório, de Caitlin Doughty, A filha perdida, de Elena Ferrante e Sea Legs and Other Stories, de Candice J O’Reilly. Não se enganem pela quantidade – são livros de poucas páginas, naquele esquema de leitura rápida em contraste com a densidade do conteúdo. O da Anne Loyer peguei mais para dar uma refrescada na leitura em francês. Faz tempo que não leio no original e, antes de encarar um romance mais “sério”, peguei Comme une envie de voir la mer, que é literatura infantojuvenil. Levinho e meio bobinho, tem uma abordagem boa sobre adoção. Gosto de estabelecer uma conexão entre as poetas da lista. Sobre Warsan Shire recomendo a leitura desta matéria maravilhosa da Odhara. Ela ficou conhecida como “a poeta por trás do álbum Lemonade, de Beyoncé”, e mesmo amando essa parceria não dá para “resumir” a Warsan a isso.

Warsan Shire
Warsan Shire

Nayyirah Waheed
Nayyirah Waheed

A escrita dela me lembra demais a de Nayyirah. Ambas abordam temas pesados com leveza e falam muito sobre o feminino e pequenos sentimentos cotidianos. Acho que merecem um post à parte, vamos pensar. A Candice é mais suave, gosto de ficar relendo Sea Legs quando preciso de algo para me tranquilizar. Dói admitir que não morri de amores pelo livro da Ferrante. Amo a série Napolitana, a cada livro me envolvo mais com a ‘saga’ (vocês não sabem o quanto espero pelo quarto e último volume). Peguei A filha perdida na esperança de matar a saudade e não consegui me envolver com a história. É uma leitura rápida, bem escrita como de praxe, só não me cativou. Agora Confissões do crematório merece DEMAIS um post só para ele por diversos motivos. É um livro escrito por uma (isso mesmo, UMA) agente funerária (informação inútil: o termo em francês é croquemort, achei tão fofinho). Com este título. Quais as chances? Quem me conhece sabe, sou gótica suave e 0% entusiasta do tema morte. Depois de dez páginas estava fascinada pela indústria da morte (!!!) e, ao acabar o livro, passei pelo menos três horas assistindo vários vídeos do canal da Caitlin, Ask a Mortician. Digo mais: é um livro necessário, todos deveriam ler. Ele vai ter um texto bem especial só sobre ele, porém não posso deixar de indicar a crítica que a Anna Vitória (rainha) fez para o Valkírias.

Tô ouvindo: No outro andanças declarei meu amor pelo descobertas da semana do Spotify, e olha, nossa relação segue estável. Nas últimas semanas ele me presenteou com May this be love, de Jimi Hendrix (já ouviram? não consigo explicar bem o porquê, mas me dá uma paz!), com um cover muito gracinha de Zee Avi para First of the gang to die (a original é de Morrissey) e a exótica No ordinary man, de Salt Cathedral (também não encontrei o que me cativa TANTO neste clipe, mas já perdi a conta de quantas vezes assisti).

Tô visitando: Deveria sossegar minha bunda na cadeira e ficar em casa por motivos de dedicação a projetos pessoais e necessidade de economizar. Porém a vida, amores, ela vive nos enchendo de oportunidades para sabotar esses planos todos. Desde o início de 2017 conheci três lugares novos. O primeiro, a Taverna Medieval, já ganhou o coração dos nerds todos por motivos que o próprio nome do local explicam. Tem uma pegada bem Game of Thrones por lá, mas eles homenageiam o universo nerd como um todo. São bem cuidadosos com a questão da decoração do ambiente e da forma como as coisas são servidas. Uma das mesas, aliás, imita um barco viking. Os funcionários da casa usam roupas medievais e te abordam com “milady” e “milord”. Vale muito pela experiência e tudo que experimentei estava bom.

O copo pé medieval, mas a IPA era moderna e estava uma delícia (700ml de pura felicidade)
O copo pé medieval, mas a IPA era moderna e estava uma delícia (700ml de pura felicidade) [e sim, isso foi na Taverna Medieval)

Também fui conhecer o Red Bull Station. Fica colado na minha casa e por motivos obscuros só havia observado de longe. Descobri que além do espaço para exposições, o prédio possui um estúdio de gravação, um restaurante (chamado Cafeteria), e um terraço super gostoso. A Cafeteria tem menu executivo por R$39, compensa muito pelo valor. Aquele alô também aos amigos fotógrafos – para quem procura uma locação no centro, o Red Bull é uma boa pedida. A construção é bonita e possui vários espaços a serem explorados para um ensaio. Última descoberta – e digo isso rindo meio constrangida – foi o Mandíbula. Sempre perambulava pela Galeria Metrópole, moro ao lado, mas nunca tinha entrado no bar. Tem música, drinks, gente descolada, e na quarta rolou mais uma edição do Garotas no Poder (um grupo no facebook onde as meninas podem postar seus CVs ou oportunidades de trabalho só para gurias), com várias moças vendendo coisas legais para usar no carnaval. E fica coladinho na Taperá Taperá, uma livraria/biblioteca que também promove debates e exibe filmes de vez em quando. O legal da Galeria Metrópole é que, embora seja enorme, possui poucas lojas ativas. E essas poucas merecem demais sua atenção. Volto a falar sobre lá em outro post 🙂

Muito diva (risos) em uma das escadas externas do Red Bull Station
Muito diva (risos) em uma das escadas externas do Red Bull Station

Tô sentindo: Um combo DELÍCIA de angústia e ansiedade. Uma é complemento da outra, como a combinação de arroz com feijão. Não é o cenário ideal,  rola toda uma batalha diária para sobreviver no meio desse caos . Aos trancos e barrancos sempre, mas batalhando dentro das minhas possibilidades para não transformar tudo isso em um estado constante. Tudo é transitório, vai passar. Por hora sigo na investigação dessas dores, quero entender o que as desencadeia, por que ainda me incomodam tanto, etc. Não sucumbir é difícil? Sim. Pois tem sido curioso aprender a ter paciência para entender que não se deixar levar pela dor é possível. Vão por mim. 🙂