Moro num país com potencial para ser o reino do tédio. Dois minutos observando o horizonte são suficientes para dar o tom de marasmo. Nenhuma montanha, colina, pedacinho de terra amontoado em vista. Tudo plano. A imensidão de céu, verde e muita água foi, contudo, vista como desafio à população local, que rasgou o Mar do Norte e construiu cidades inteiras abaixo do nível do mar. Foi o pontapé necessário para uma sociedade inteira compreender que o céu é o limite e bem, por aqui só morre de tédio quem quer. Após quase uma década vivendo no centro do furacão, num dos locais mais populosos do mundo, foi fácil ceder e fincar meus pés num país tão paradão. Holanda chegou com tudo pra me oferecer serenidade da qual abdiquei durante a adolescência, porém com uma dose cavalar de modernidade. Unindo o melhor de dois mundos, com o perdão pelo uso dum clichê tão barato.
Quando se vive num local tão propício ao tédio, é preciso se reinventar ao máximo. Portanto o ser humano inventa túneis subterrâneos com designa impossíveis, assim como os prédios que chamam atenção pela arquitetura ousada. Igualmente se esforça para modernizar processos e mostrar o quanto tem pavor de dinheiro em espécie. Vivemos em harmonia nesta grande fazenda urbana, porém abraçamos a tecnologia para dar aquela incrementada às nossas aptidões sociais.
O bairro onde moro é bem localizado, urbano, e ideal para me colocar neste contexto de fazenda moderna. Do meu jardim às vezes ouço galinhas colocando o papo em dia, e se pedalo em direção a Leiden passo por caminhos cheios de ovelhas, porcos, patos e até mesmo lhamas. Sem contar as gaivotas, que entre primavera e verão ficam alucinadas revirando o lixo em busca de comida. Já nos ocorreu de visitar uma reserva perto daqui onde podemos alimentar diversos bichinhos e ainda adquirir produtos feitos por lá, com ingredientes oriundos da fazenda. Em certa medida até me lembra minha infância no Mato Grosso do Sul, e das longas tardes passadas nas chácaras de amigos dos meus pais.
Damos umas tantas voltas para voltar ao mesmo lugar, e assim a vida segue seu curso.
Parte significativa de meus amigos mora em Rotterdam, e por ser tão perto é comum passar meus fins de semana (ou ao menos parte deles) por lá. É difícil comparar dado o tamanho das cidades, porém Rotterdam é para mim uma versão reduzida de São Paulo. Tem essa pegada meio hipster modernosa por toda parte, com um sem número de bares, cafés e restaurantes que são um perigo para minha carteira.
Ter amigos por lá é vantajoso pois eles conhecem tudo e já tomam conta do filtro por nós. Nem preciso me dar o trabalho de procurar lugares legais; a lista vem pronta. Quando pensava nem ser possível me surpreender, acabamos descobrindo um canto até então desconhecido da cidade. Delfshaven costumava ser uma cidade à parte, construída em torno do porto de Delft. Cheguei ao bairro de bicicleta após um jantar farto em Middelland, confusa entre o choque do desconhecido e o efeito do Riesling compartilhado entre amigos. Dez minutos em direção nunca antes explorada e lá estava adentrando numa mini-Amsterdam bem menos tumultuada, uma paisagem dessas que Van Gogh possivelmente se demoraria com deleite para reproduzir em tela.
Tal qual a típica emocionada que sou, fiquei abestalhada com o novo. É deliciosa a sensação de poder descobrir um lugar que até então me convenci conhecer como a palma de minha mão. Sabemos tão pouco. Mais uma vez, a Holanda mandou o lembrete que o tédio é só para quem escolhe vivê-lo. Em uma tarde atravessei o Maastunnel fiets, um túnel construído debaixo d’água para oferecer uma opção extra de travessia aos ciclistas, tomei um drink numa espécie de navio-museu-bar, um navio que ancorou rumo à eternidade; jantei em um restaurante novo, e terminei explorando essa Delfshaven charmosa onde certamente terei o prazer de me perder mais vezes no futuro.
Loucura pensar na minha sorte por enfim ter algum conforto no peito ao chamar este lugar de lar. Tamanho privilégio em poder me espalhar pelo mundo e me encontrar em lugares tão distantes da minha origem.
