Delfshaven

Moro num país com potencial para ser o reino do tédio. Dois minutos observando o horizonte são suficientes para dar o tom de marasmo. Nenhuma montanha, colina, pedacinho de terra amontoado em vista. Tudo plano. A imensidão de céu, verde e muita água foi, contudo, vista como desafio à população local, que rasgou o Mar do Norte e construiu cidades inteiras abaixo do nível do mar. Foi o pontapé necessário para uma sociedade inteira compreender que o céu é o limite e bem, por aqui só morre de tédio quem quer. Após quase uma década vivendo no centro do furacão, num dos locais mais populosos do mundo, foi fácil ceder e fincar meus pés num país tão paradão. Holanda chegou com tudo pra me oferecer serenidade da qual abdiquei durante a adolescência, porém com uma dose cavalar de modernidade. Unindo o melhor de dois mundos, com o perdão pelo uso dum clichê tão barato.

Quando se vive num local tão propício ao tédio, é preciso se reinventar ao máximo. Portanto o ser humano inventa túneis subterrâneos com designa impossíveis, assim como os prédios que chamam atenção pela arquitetura ousada. Igualmente se esforça para modernizar processos e mostrar o quanto tem pavor de dinheiro em espécie. Vivemos em harmonia nesta grande fazenda urbana, porém abraçamos a tecnologia para dar aquela incrementada às nossas aptidões sociais.

O bairro onde moro é bem localizado, urbano, e ideal para me colocar neste contexto de fazenda moderna. Do meu jardim às vezes ouço galinhas colocando o papo em dia, e se pedalo em direção a Leiden passo por caminhos cheios de ovelhas, porcos, patos e até mesmo lhamas. Sem contar as gaivotas, que entre primavera e verão ficam alucinadas revirando o lixo em busca de comida. Já nos ocorreu de visitar uma reserva perto daqui onde podemos alimentar diversos bichinhos e ainda adquirir produtos feitos por lá, com ingredientes oriundos da fazenda. Em certa medida até me lembra minha infância no Mato Grosso do Sul, e das longas tardes passadas nas chácaras de amigos dos meus pais.

Damos umas tantas voltas para voltar ao mesmo lugar, e assim a vida segue seu curso.

Parte significativa de meus amigos mora em Rotterdam, e por ser tão perto é comum passar meus fins de semana (ou ao menos parte deles) por lá. É difícil comparar dado o tamanho das cidades, porém Rotterdam é para mim uma versão reduzida de São Paulo. Tem essa pegada meio hipster modernosa por toda parte, com um sem número de bares, cafés e restaurantes que são um perigo para minha carteira.

Ter amigos por lá é vantajoso pois eles conhecem tudo e já tomam conta do filtro por nós. Nem preciso me dar o trabalho de procurar lugares legais; a lista vem pronta. Quando pensava nem ser possível me surpreender, acabamos descobrindo um canto até então desconhecido da cidade. Delfshaven costumava ser uma cidade à parte, construída em torno do porto de Delft. Cheguei ao bairro de bicicleta após um jantar farto em Middelland, confusa entre o choque do desconhecido e o efeito do Riesling compartilhado entre amigos. Dez minutos em direção nunca antes explorada e lá estava adentrando numa mini-Amsterdam bem menos tumultuada, uma paisagem dessas que Van Gogh possivelmente se demoraria com deleite para reproduzir em tela.

Tal qual a típica emocionada que sou, fiquei abestalhada com o novo. É deliciosa a sensação de poder descobrir um lugar que até então me convenci conhecer como a palma de minha mão. Sabemos tão pouco. Mais uma vez, a Holanda mandou o lembrete que o tédio é só para quem escolhe vivê-lo. Em uma tarde atravessei o Maastunnel fiets, um túnel construído debaixo d’água para oferecer uma opção extra de travessia aos ciclistas, tomei um drink numa espécie de navio-museu-bar, um navio que ancorou rumo à eternidade; jantei em um restaurante novo, e terminei explorando essa Delfshaven charmosa onde certamente terei o prazer de me perder mais vezes no futuro.

Loucura pensar na minha sorte por enfim ter algum conforto no peito ao chamar este lugar de lar. Tamanho privilégio em poder me espalhar pelo mundo e me encontrar em lugares tão distantes da minha origem.

Acomodada no desconforto

A vida me empurrou a uma semana de mínimos.

“Fazer apenas o necessário para sobreviver”, a dita lei do menor esforço.

Como julgar o necessário? As horas de sono contam algo, deitar-se na cama antes da meia noite e conseguir manter os olhos fechados e o corpo sereno deve ter suas vantagens. Faz pouca diferença se tomo banho e lavo os dentes, se me penteio ou mantenho os cabelos presos num rabo de cabelo. A camiseta está amassada, a calça com respingos de molho, porém não importa. Ninguém vai me ver, tampouco me cheirar.

O alimento desaparece do prato, tenho a sensação de que não mastiguei direito. O corpo físico se espalha pelo mundo sem gracejo, o interno, já meio em frangalhos, acionou o botão automático para comportar o peso destes mínimos.

Este modo permite ligar aparelhos eletrônicos e responder mensagens que não requerem uso excessivo de massa cefálica. Sem necessidade de qualquer raciocínio lógico, a mente se resigna sem fazer perguntas. Forço o físico a se movimentar pelo menos trinta e cinco minutos todos os dias, repetindo mecanicamente cada exercício com o pouco de energia restante.

No fim do dia me pergunto me pergunto se um copo de chá que trará alguma paz. Se consigo contar cinco respirações contínuas sem sentir vontade de atropelá-las. Se as histórias alheias nas páginas dos livros vão me ajudar a me desconectar da minha realidade. Se alguém vai perder uma noite de sono porque a semana de descontos acabou ou porque não forneci uma informação que a pessoa queria muito, mas eu não tinha.

Na semana de mínimos me cerquei de silêncios para anuviar a travessia. As palavras me ferem a pele, doem mais do que transpirar após meia hora de corrida contínua. Todo o processo de dar forma as construções internas e expeli-las para o lado de fora dói o triplo, e preciso estocar um tanto de energia para conseguir, enfim, avançar.

Os passos ganham forma lentamente, mas a trilha, tortuosa e íngreme, é desestabilizadora.

Dentro do menor esforço a mensagem de resiliência e força é balela, devidamente empurrada do penhasco. Quero sobreviver e encontrar coragem para encarar e rir de caminhos ainda mais desafiadores, mas por hoje prefiro achar uma pedra, sentar-me e observar o caminho como se com ele não restasse nenhuma responsabilidade.

Hoje abrirei mão da vista panorâmica para me acomodar no desconforto.

Mais um conto da vida adulta

As têmporas latejam. Esses dias em que já acordo com dor de cabeça são os piores. Fica a dúvida se foi a exposição ao celular antes de me deitar, puro efeito de noite mal-dormida, ou alguma virose que se instala aos poucos. Ser adulto é este acúmulo de angústias e incertezas. Uma dor mínima descamba para algo maior sem esforço e toda forma de cansaço parece triplicar sua potência conforme a idade avança. Esses tempos até me peguei pensando se aguento até depois dos cinquenta, pois se já estou neste estado aos trinta, o corpo deve pedir recall ou se desligar por completo a qualquer momento. 

Minhas palavras soam exageradas, até sinto repulsa. Falar sobre o que nos é mais íntimo e um pouco cruel e causa desgosto, visto que só os discursos cheios de floreios ou pontuados por lições de superação são acolhidos com apreço. 

A minha verdade, todavia, é essa. Os adultos me enganaram como ninguém, vendendo uma postura de fortaleza resistente. Enquanto crescia, quase não vi pessoas mais velhas em prantos. Quando percebia alguém chorando na rua, ou no transporte público, notava o quanto a pessoa parecia constrangida. Na minha cabeça inocente a matemática era simples, e envolvia ter uma profissão formal, cumprir horário de trabalho e passar um tempo com a família nas horas livres. 

Os olhos nunca tiveram descanso, o cérebro em constante atividade tampouco, portanto nunca deixei de notar alguns pesos, sobretudo emocionais, que recaíam sobre algumas pessoas da família. No entanto, mais uma vez, os adultos pareciam tomar uma atitude revolucionária e sumir com problemas de qualquer natureza. 

Em algum momento entre os 18 e 19 anos, quando paguei meu primeiro boleto com o salário do estágio, tive meu primeiro estalo de que ser adulto tinha um gosto amargo. Um lado meu se sentiu responsável, auto-suficiente, potente. A empolgação logo esmaeceria, pois uma responsabilidade desta envergadura é carregada de culpa. Na minha cabeça, as inquietudes pipocavam. Conseguiria cobrir minhas necessidades e ainda ter uma grana para o lazer? Seria o salário suficiente? Será que eu era boa o suficiente para almejar uma promoção no futuro ou conseguir um emprego melhor? 

Após sete anos trabalhando como assessora de imprensa, um mestrado e uma carreira tão caótica quanto um temporal, essas questões não só povoam meu cotidiano como me tiram boas noites de sono. 

Será que em algum momento viramos a chave e ser adulto se torna um pouco mais leve?

Hoje não deu

Dias de outono despertam ligeira letargia. O sol preguiçoso, a impressão de que ainda é noite embora já seja mais de nove horas. Movimento fraco, bicicletas se deslocam gradualmente, algumas poucas pessoas aguardam o ônibus na parada. As ruas estão cobertas de folhas seca, é preciso prestar atenção aos passos para evitar escorregar. Mesmo os patos que povoam um dos lagos do início do trajeto decidiram ficar em outro lugar longe daqui. 

Logo compreendo o porquê. Após quase um quilômetro correndo, percebo precipitações leves. Com o corpo já aquecido e exposto além dos muros de minha residência, decido continuar. Correr mais quatro quilômetros debaixo de garoa não dói tanto assim, sobretudo ante ventania tão calma. 

Mais adiante, uma mulher e um homem se protegem da precipitação como podem debaixo das respectivas capas de chuva transparentes. Um carro freia e aguarda uma mulher, acompanhada por sete crianças, atravessarem a faixa de pedestre para então efetuar a curva à direita. Passo na frente de um prédio com um letreiro corrido, em letras vermelhas, que me conta que estamos no dia 25 de outubro, e são 9h15.

Tenho música nos fones, mas consigo ouvir o silêncio das ruas. Finalizo o trajeto no modo automático, deixando o corpo se levar sozinho na direção de volta para casa.

O dia ensolarado de ontem claramente levou consigo a inspiração para rabiscar qualquer besteira neste espaço.

Retrato de natureza serena e sem precipitações

Quando fui assistir Jojo Rabbit no Pathé Buitenhof, um de meus endereços favoritos em Den Haag, me impressionou a quantidade de pessoas nas ruas. O tempo honra a imprevisibilidade na Holanda, portanto nossa garantia de um dia ensolarado em um fevereiro invernal era quase nula. Estacionei a bicicleta na frente do cinema um pouco em cima da hora, mas ainda em tempo para comprar pipoca e me instalar na sala. Estava com um casal de amigos, e copiamos os locais ao fim da sessão. Encontramos um terraço com mesas livres e nos instalamos para tomar um café e tirar proveito desta figura tão ausente, o sol.

Foi em fevereiro de 2020, quando a pandemia ainda era uma ameaça e não parecia tão séria.

Comentei, na ocasião, que era curioso ver o quanto os holandeses se desdobram para aproveitar um dia de céu limpo. Pareceu exagero quando visitei o país sem ter a menor ideia que um dia o chamaria de lar. Porém bastou um par de meses para capturar cenas incríveis e entender como ninguém o desespero por um mínimo filete de sol.

Ao longo do inverno, independente dos termômetros marcando temperaturas nada amenas, se o sol faz uma aparição surpresa, todos correm para as ruas. As pessoas preparam lanches para comer nos parques e florestas, o pessoal dos esportes vai até as dunas pedalar com os gambitos de fora, os terraços tornam-se disputadíssimos. Em Den Haag, onde moro, há mesmo quem arrisque jogar a canga sobre a areia e curtir o sol na praia.

Vacinada e após quase dois anos apreciando as raras aparições do sol no terraço de casa, hoje faço tal qual os locais. Qualquer dia com o sol no talo é deixa para caminhar no bosque próximo daqui, ou me sentar em algum terraço para tomar café e sentir o calor solar tocar meu rosto.

Minha sorte é ter meu primeiro domingo de folga em meses justo em um dia outonal de beleza tão complexa em ser descrita.

Hoje minhas irritações também descansaram. Viajei nos delírios de Escher, quase dois depois de adiar minha visita ao museu no Het Paleis, tomei mimosa às três da tarde, caminhei nas imediações do nosso antigo endereço até os pés pedirem arrego. Observei a vida acontecer e me senti ligeiramente mais próxima dos locais por compartilhar do sentimento de coração cheio ante uma natureza tão serena e sem precipitações.

Se perdi o sono neste início de domingo, já nem me lembro mais.

Dispensa filtros ♥️

Corpo em movimento

Em uma realidade pré-pandêmica, os estudos me levaram ao interior da França em setembro de 2017. Cheguei devagar e me dei tempo para resolver burocracias e me instalar antes de começar a criar uma rotina. Não tardaria. Já havia preparado muita coisa antes da mudança, morar e estudar em uma cidade tão pequena te ajuda a criar hábitos com certa rapidez. Em dezembro já me inscrevi na academia mais próxima de casa, queria produzir endorfina o suficiente para não me sentir tão abatida pelo inverno cinza e depressivo de Montbéliard. 

Praticar atividade física faz parte da minha rotina há anos. Tive minhas fases, mas posso afirmar que foi uma constante em minha vida. Academia funcionava para mim, portanto batia o cartão no mínimo três vezes por semana e intercalava cardio com treinos de força. Já treinei desesperada para perder peso ou para compensar um dia de comilança abundante? Claro. Na maior parte do tempo, porém, o exercício físico era um aliado para cuidar da saúde e me sentir mais ativa.  

Até entrar na turma do pessoal das corridas. Peguei gosto pela atividade, pois encontrara enfim um esporte que poderia encaixar no meu cotidiano e que não dependia de equipamentos ou de gente para praticar. Talvez um bom par de tênis demande investimento maior, porém dura tanto tempo que não pesa tanto no bolso. Amava correr pelas ruas de São Paulo, mas se as condições meteorológicas não ajudassem era só substituir o asfalto pela esteira. Era uma atividade prática e acessível, embora viesse com seus contratempos. Correr mais de dois minutos seguidos sem andar não foi intuitivo, exigiu treino e perseverança – todavia isto é assunto para outro momento. 

Minha paixão extrapolou limites e ousei longas distâncias. Completei duas meias maratonas, mas um dos meus joelhos cansou mais rápido que eu e fui forçada a interromper as atividades por um tempo. Imagine uma pessoa que corria três, quatro vezes por semana obrigada a não praticar nenhuma atividade física por um tempo, e tendo como única opção a bicicleta ergométrica ao retomar. Um horror sem fim. 

Este período foi o primeiro semestre de 2017, portanto curei a agonia de não poder correr com a preparação ao mestrado. O ortopedista liberou as corridas pouco antes da minha partida, solicitando apenas que limitasse as distâncias a 10 km. 

Uma senhora quebra de rotina, digamos. Assimilar minha nova realidade não era uma tarefa fácil e a cabeça estava quente demais para cogitar voltar ao meu ritmo de outrora em São Paulo. Durante todo o período em Montbéliard, um ano e seis meses, tive constância nos treinos. Caminhava meia hora diariamente para ir até à faculdade e repetia o processo na volta, o corpo estava em movimento. Já não podemos fazer tantos elogios à minha alimentação. Usufruí com classe dos meus últimos anos de metabolismo eficaz, comendo muitas baguetes e quiches, me permitindo kebabs e docinhos de vez em sempre. 

Até me mudar para Annecy, onde realizei meu estágio, etapa final do mestrado. Morava em um apartamento de 18 m2, sem academias por perto, e deveras fragilizada emocionalmente. A paisagem me convidava a praticar exercício ao ar livre, mas minha cabeça andava tão desgraçada que não sobrava disposição. Após muitas frustrações, encontrei meu namorado, uma luz no fim do túnel. Nossos encontros foram permeados por muita bebida e comidas nadas saudáveis. Em resumo, foi um ano inteiro de puro sedentarismo e comendo sem nenhum filtro. Não limito contra nem a favor certas categorias de comida, uma de minhas atividades favoritas É comer. Entretanto, naquele período consumia com frequência tudo que até então era exceção. 

Ao me instalar na Holanda, poucos meses antes da pandemia eclodir, deixei o bonde andar. Sucumbi sem hesitar, sobretudo ante o confinamento e todas as incertezas proporcionadas pela pandemia. Levei um ano inteiro para cogitar mudar o cenário, e só após conseguir um emprego fui atrás de uma nutricionista e alguns treinos para fazer em casa. Comecei a trajetória em março, quando me comprometi a me exercitar diariamente. Queria manter o meu corpo em movimento, e para tornar minha missão possível intercalei treinos mais intensos com alongamentos. Para este segundo ano de pandemia, digo com segurança que o esporte me salvou. Se não fosse minha produção diária de endorfina, não daria conta da rotina. 

Me tornei a adulta que se levanta diariamente às 6 da manhã para fazer exercício. Só funcionou porque se tornou meu momento. São 30 – 40 minutos que tenho comigo, onde a sensação de estar me cuidando prevalece. Me provocou um bem tão absurdo que hoje em dia já acordo antes do despertador, animada pelo treino do dia. Sentimento que nunca experimentei, mesmo nos meus três anos de amor constante pela corrida. 

Nesta manhã, no entanto, foi um desses dias onde o corpo esteve muito próximo de pedir arrego. Desde o início do acompanhamento com a nutricionista dei vários furos, nada mais normal para quem experimenta um paciente período de readaptação. O exercício exigiu pausas quando recebemos visitas e tivemos imprevistos, portanto os resultados seguem preguiçosos. Agora sou uma mulher de trinta anos com metabolismo preguiçoso, e uma das maiores vantagens da idade é respeitar meu ritmo e aceitar que os resultados não surgem do dia para noite, e que isso não é — e nem deve — ser o fim do mundo. 

2021 foi um imenso salto de fé no meu cuidado físico. Amo o processo de me cuidar, reaprender sobre meus limites e o que me faz bem. Construir o entendimento de que em alguns dias só sairá na força do ódio, conforme aconteceu hoje, e em outros trocarei o tapete de exercícios pelo sofá.

Registro suado pós corrida, quando voltei a correr no meio do ano ♥️

Viagens meditativas

Acordar no meio da madrugada e perder o sono é tão ruim quanto despertar de um pesadelo. Quando acontece comigo, me encontro em um estado confuso. Uma mistura confusa de sonolência com lucidez me empurra em direção a questões perturbadoras de toda natureza. Situações mal resolvidas, problemas de trabalho, pendências que não consegui resolver em tempo. Aquela memória de dois mil e dez que ainda causa constrangimento, a angústia de querer me empenhar a aprender holandês e não conseguir me motivar. Os incômodos se encontram e debatem no meio a insônia. É como se eu me sentasse com a minha mente e começássemos a destrinchar uma série infinita de pendências. 

O estado sonolento não ajuda, pois os pensamentos são mais potentes e tomam conta de qualquer racionalidade que me ajude e relaxar e voltar a dormir. Quando morava sozinha, aproveitava o primeiro momento de lucidez para pegar meu celular e procurar alguma meditação para ajudar a pegar no sono. Usava o Headspace como guia, e os resultados quase sempre eram eficazes. Agora que divido uma cama não quero impor minhas meditações, tampouco a luz do smartphone na cara de meu parceiro, portanto foi necessário partir para métodos alternativos. 

Ainda não atingi o nirvana e passo longe da possibilidade de me tornar um ser humano de luz, portanto meditar em silêncio é um desafio. Minha dificuldade de concentração uma coisa de outro mundo. Preciso de música ou de alguém guiando. Busco, entretanto, uma forma de trazer algumas técnicas de meditação para remediar a insônia. Começo pelo gancho da imaginação. Escolho algum parque e me imagino nele, deitada na grama enquanto ouço os pássaros e observo movimentações da natureza. Quando consigo me sentir cem por cento no cenário, dobro a concentração e me volto à respiração, fazendo alguns exercícios de relaxamento. 

Inspirar e expirar prestando atenção na respiração e afastando pensamentos nocivos tem a sua relevância. A ansiedade ao menos sossega, e me ajuda a focar no que interessa, que no caso é voltar a dormir. Viajar para longe é igualmente eficaz. Às vezes substituo o parque por algum local calmo visitado no passado e me vejo por lá. Vira uma espécie de spa mental. Se você caiu neste texto buscando a solução para noites mal dormidas, vale a tentativa. Não dá para esperar um milagre e nem sempre resolve, mas pode auxiliar a abrandar as angústias e se desconectar das obrigações. 

Se o cérebro ri da cara do meu empenho meditativo, quem sou eu para insistir? Antes pegava o celular e bisbilhotava a vida alheia até perder o último fio de sono. Não recomendo. Costumava me deixar com muita dor de cabeça ao longo da manhã seguinte, possível efeito da exposição à luz fria da tela no meio do escuro.

Agora saio do quarto, pego uma manta, me aconchego no sofá e dou continuidade à minha leitura atual. Se tem algo que fiz este ano foi retomar o hábito de leitura. Engato um livro no outro que é para não dar brecha a confusões na hora de escolher o próximo título. Impossibilitada de viajar pelo método meditativo, confio a missão aos livros. A escolha do momento, por sinal, me permite viajar sem sair de casa com imenso primor. Um amigo me emprestou Less, de Andrew Sean Greer, e é uma delícia poder viajar junto ao sofrido protagonista. Agora, por exemplo, estamos em Torino, cidade que adoraria visitar outra vez.

Hoje, entretanto, a insônia deu trégua e me antecipou só 15 minutos do planejado despertador. Atendi ao chamado, mas desta vez estendi o tapete de exercício e levantei alguns pesos. É preciso começar a produção de endorfina bem cedo caso queira ter energia suficiente para responder um monte de clientes reclamões das nove às dezessete.

Meu companheiro de leitura do momento

Biografia de minhas chuvas


Existe uma aura poética na sequência onde Gene Kelly, com um sorriso no rosto, pula de um canto ao outro cantarolando Singing in the rain. Trajando terno e com um guarda-chuva preto a tiracolo, ele dispensa o táxi e usa o objeto como parte de sua performance. Ele parece genuinamente feliz, celebrando uma alegria gloriosa e quase tirando sarro da chuva. A cena é tão famosa que muita gente a conhece sem nunca ter assistido ao filme homônimo. Gostando de musicais ou não, é difícil não se contagiar com tamanha felicidade. Dá vontade de fazer igual.

Hoje, ao me lembrar desta cena, penso no quanto só estando muito chapado de endorfina para conseguir mandar a chuva às cucuias e se curtir tanto. Chuva, para mim, é sinônimo de incômodo. Detesto a sensação de caminhar com as roupas encharcadas e me enerva ainda mais não poder usar óculos por conta da invasão de pequenas gotículas de água. Se tem ventania e frio, o nervoso aumenta. 

Penso muito na biografia de minhas chuvas. Quando ainda morava em Campo Grande, cidade natal e berço dos meus anos jovens, havia certo teor poético. Já cheguei a pegar chuva de propósito, pois queria sentir o êxtase que lia nos livros ou observava nos filmes. Nenhum xodó veio me beijar ao som de Hear you me, portanto embora vivesse uma ficção impecável em minha mente, o cenário se limitava a uma adolescente portando uniforme escolar e toda desgastada pela chuva. Ser carregada pelos meus pais e poder usar carro para tudo em uma cidade pequena garantia certos privilégios.

Já em São Paulo, ganharam um novo tom melancólico. Ficava pensativa, se coubesse ao momento preparava um chá e curtia o som da chuva enquanto escrevia ou lia. Na capital paulista, todavia, o carro deixou de compor a paisagem pessoal, o que me expunha a eventuais tempestades no caminho de volta da faculdade ou do trabalho. Tomei cada banho! Sem contar no número de vezes em que um trajeto de meia hora de ônibus se transformava em quase duas horas parada no trânsito.

Na França a experiência era tal qual a paulistana. O romantismo morrera anos antes desta mudança, e não seria o cheiro de baguete recém-saída do forno que melhoraria as condições. Chegava a ser pior, pois no inverno a chuva também se transformava em tempestade de neve e tudo ficava ainda mais escorregadio. 

A temporada atual é ambientada na Holanda, onde mais chove do que faz sol. Enquanto cobria a cabeça com o capuz da capa de chuva esta manhã, examinei brevemente a vida acontecendo inundada de preguiça à minha frente. A chuva é intrínseca ao país e os locais nascem sabendo disso. Um aguaceiro não impede o holandês de sair de casa. Afinal, as crianças precisam ir à escola, os pais ao trabalho, e mesmo um eventual restaurante entre amigos não será cancelado por conta das condições climáticas. O número de pessoas que vejo diariamente pedalando, ou mesmo pedalando e carregando sacolas debaixo de chuva não tá na história. 

Quiçá sinto uma ponta de inveja de tamanha indiferença. Para mim, é preciso estar feliz demais da conta, tal qual o personagem de Gene Kelly em Singing in the rain, para ficar embasbacado e curtir como se fosse algo tão digno de apreciação. 

Atingir esta familiaridade talvez até ajudaria a rever a chuva com bons olhos. Assim como fiz esta manhã, ao ser surpreendida por Irene, de Rodrigo Amarante, que tocava em uma de minhas livrarias favoritas. Tomei meu café revivendo memórias enquanto espreitando o vento e a chuva causando na calçada. Fico me perguntando se em algum momento a chave há de virar e minha trajetória com as chuvas seguirá seu caminho rumo a um final feliz. Será que uma hora deixarei de me importar e a encararei como mero detalhe? 

Enquanto a bandeira branca entre a chuva e mim não chega, encaro o turno noturno do trabalho pensando no quanto gostaria de estar em um cenário confortável agora. Algo digno de pinterest, debaixo de uma coberta quentinha, com um livro, tomando um chá, e podendo até ter um som de tempestade de trilha sonora.

Imagem meramente ilustrativa de um passeio acompanhado pela dita cuja em Brugges, na Bélgica

Fazer da escrita hábito

Em uma manhã chuvosa de quarta-feira, é inevitável seguir o fluxo. Não sobra espaço para raciocínio lógico ou tomar uma decisão própria. Quando as portas do metrô se abrem, segue-se o fluxo de pessoas que se distribuem espontaneamente entre a escada rolante e a tradicional. Num balé nada sincronizado os cartões dançam pelos leitores e as portas mal se fecham. Mais alguns passos e outro lance de escadas nos coloca para fora das paredes da estação Beurs, onde as imediações do Maritime Museum nos acolhe com ventania e chuva intensas tão típicas de cidades portuárias. Jeito nada sutil de afastar o estado de sonolência de qualquer proletariado. 

Observo o céu carregado, transitando do azul-escuro para cinza. São quase nove horas da manhã, porém estamos em outubro e o outono já deixa o sol mais preguiçoso. Fecho o zíper da capa de chuva até a altura do pescoço e abro meu guarda-chuva antes de atravessar parte de Westblaak em direção ao escritório. Nesta caminhada me peguei pensando: e se todo dia abrisse a plataforma do blog e escrevesse qualquer besteira, e repetisse a ação por vinte e um dias seguidos? 

Pensei na proposta compartilhada por Dani Arrais no início de julho, sugerindo escrever uma página por dia durante vinte e um dias. Combinado com os inúmeros empurrões das oficinas promovidas por Tayná Saez, que nos motiva a escrever sem amarras, pensei ser este um bom ponto de partida para trazer vida ao Lidy com isso outra vez. 

Entretanto, para tornar o projeto possível, flexibilizei a sugestão. Não haverá um mínimo de caracteres ou parágrafos. A ideia é abrir o editor de textos diariamente e agrupar as palavras com o que me vier à mente. Poderá ser uma crônica, ficção, desabafo breve. Sem grandes edições, tampouco ambições O intuito é me motivar a fazer da escrita hábito, deixar o processo um pouco mais fluido. Se no futuro algum destes rabiscos me inspirar a escrever algo mais elaborado, melhor ainda.

Instalada no escritório há algumas horas e após digerir esta proposta, observei o céu clarear enquanto escrevia estas linhas entre um respiro e outro das obrigações do trabalho.  A playlist de gosto duvidoso do meu chefe está modo aleatório e acaba de mandar um lovin’ you, de Minnie Riperton. Minha nostalgia ficou abalada e fui forte o suficiente para conter o riso, pois mentalmente parti sem escala para este vídeo.

Enquanto não viro um fungo perante a ausência de sol e o excesso de chuva, preciso balancear o estoque de energia para ter alguma força até o fim do expediente. Por hora, embora tente pensar em qualquer coisa motivadora, só consigo contar as horas para me deitar e dormir novamente. 

Devo culpar o clima ou é só uma onda depressiva de maior impacto?

Corona Diaries #12 – Experimentando olhares, reinventando saídas

De Edward Hopper

Como transformar o ordinário de dias tão similares em algo extraordinário? Gradualmente o movimento volta ao normal. Ou novo normal, para quem é deste time. Os bares, cafés e restaurantes agora podem acolher o público sem exigir reserva prévia, tanto no terraço quanto do lado de dentro. Os cinemas e museus abriram as portas, espero sujar o novo par de Vans em veludo verde em algum momento desta semana. Ainda tenho percepções desconfortáveis dos arredores. 

Um pouco como animais que se camuflam para se proteger de predadores e deixam só as pálpebras se moverem em ritmo lento, discreto. Um olhar aterrorizado e todavia atento, à espera de algum sinal que passe segurança para dar um passo adiante.

Faço meus desbravamentos de pouco em pouco acanhada, e noto o quanto meus devaneios já não se vestem da mesma forma. Eles perderam o traquejo social, desacostumaram a xeretar a vida alheia e perder horas configurando insanos cenários. Uma hora há de voltar, os músculos foram postos a jogo e apesar da preguiça e do mau jeito vão reaprender a se mover sem tantas amarras.

Ficar enclausurada me fez abrir os olhos para o lado de dentro e criar outro entendimento da base. As incursões ao mundo exterior também foram capturadas, cada uma à sua maneira, para serem degustadas aos poucos no conforto do meu endereço. Hoje mesmo, enquanto girava a maçaneta da porta ao voltar do supermercado, percebi a borracha da campainha desgastada e questionei quantas vezes ela foi pressionada, com que urgência, se foi por carta ou por visita. 

Desde a mudança, virou um portal de inúmeras encomendas, diversos mimos para deixar tudo com nosso toque, e umas tantas inutilidades, pois nossas fugas também ocupam o espaço de um carrinho virtual. Com muita alegria, por conseguinte, me alegrei ao ouvir a caixa de cartas devorar o envelope cujo remetente era Prefeitura – meu convite formal para tomar vacina contra COVID-19. 

Fico tal qual Matilde Campilho escreveu um dia, metade folia, metade desespero. Saber o quanto minha vez na fila estava próxima foi fonte da mais gostosa euforia. E no entanto me atropelo em angústias e despreparo, poisme parece uma possibilidade remota pensar num futuro próximo e esboçar quaisquer planos concretos.

Até lá, vou ceder mais brechas ao meu eu expectador. Deixar ver, montar quebra-cabeças e fazer misturas de dar orgulho a qualquer surrealista. 

Permitir ao mundo que venha até mim. Recuso-me a ir em sua direção, a engajar riscos. 

De mim não parte. Quero sentir como vai se achegar, de que forma vamos combinar nossos passos de dança contemporânea para dar tom extraordinário ao já nem tão ordinário assim.