
Arte de Victoria Rivero
Desde muito jovem desenvolvi o hábito de rir da própria desgraça. Algumas linhas da psicologia chamam isso de chiste, e podemos traduzir como o famoso risos nervosos. Se eu estava angustiada ou com medo, soltava uma gostosa gargalhada. Lembro-me de uma vez em que estava viajando de avião com a minha mãe e, em meio a uma turbulência, a nave perdeu um pouco da pressurização. Tive uma crise de risos. Não é algo controlável, simplesmente acontece. Nunca vou me esquecer da cara da moça na fileira ao lado da nossa, que esmagava um terço com entre as duas mãos, chorava e olhava horrorizada para esta mulher doida do riso incontrolável. Me senti muito mal durante este episódio, pois não queria soar desrespeituosa. O máximo que consegui fazer com o mínimo de sucesso foi tapar a minha boca.
Este incidente diz muito sobre o meu jeito de levar a vida. Assumo o riso descontrolado como uma bomba relógio, até chegar o momento a explosão, quando baixo a guarda e tenho aquela crise de choro que me deixa com as pálpebras doloridas. Estes são meus escapes mais fortes. Já tive minhas fases de comer e beber para acalmar as mágoas, porém na maior parte do tempo oscilo entre os risos nervosos e a choradeira ilimitada.
Afinal, cada pessoa encontra a saída mais fácil e conveniente para suas necessidades do momento. Porém vejo o receio em falar sobre saúde mental como um traço compartilhado comum entre muitas pessoas neuroatípicas. Pois não é fácil expor algo tão sensível. Minha intenção não é reduzir o peso de outras doenças, tampouco de colocar diferentes níveis de dor em uma balança. Porém é curioso notar o quanto costuma ser mais fácil anunciar o diagnóstico de uma doença “clássica” do que assumir o tratamento de um problema psicológico.
Comecei a fazer psicanálise em 2015 e isso aflorou muita coisa que passou anos entalada na garganta. Começou com um processo muito doloroso, mas sentia aos poucos o quanto progredia e me reconstruía mais forte. Até ter uma recaída ainda no primeiro semestre de 2016, quando comecei a ter alguns sintomas de ansiedade. Minha primeira lembrança remete a um dia normal de trabalho quando, sem nenhum gatilho aparente, comecei a suar frio e ter taquicardia. Pensei ser algo pontual, porém além de se repetir incontáveis vezes, o quadro só piorou ao longo das semanas. Passei umas boas sessões mapeando estes sintomas com minha analista, até ela manifestar que talvez fosse o caso de consultar com um psiquiatra. Aquele não seria meu primeiro encontro com a psiquiatria. No meu primeiro contato, em 2014, o acompanhamento médico deixou um legado digamos traumático. As circunstâncias pouco ajudaram, pois na época não houve nenhuma assistência psicológica e eu só queria uma solução prática para conseguir sair da minha cama e seguir com as obrigações de vida adulta que, naquele ponto, tomavam proporções cada vez mais sérias.
Ouvir de minha analista que precisaria consultar um psiquiatra foi difícil, mas acabei cedendo. Busquei especialistas, li uma caralhada de avaliações antes de marcar a primeira consulta. Por sorte o santo bateu de imediato, facilitando minha vida e me poupando de sair em busca de um psiquiatra minimamente coerente. Depois de um ano sendo acompanhada por ele, recebi alta ainda no primeiro semestre de 2017. Mais uma vez, as circunstâncias eram favoráveis até demais. Começava a preparar minha mudança para França, havia concluído minha inscrição no mestrado e só aguardava o famigerado visto. Essa sensação boa de realizar um sonho me anestesiaria por muitos meses. De qualquer forma, eu havia me preparado para aquilo. Depois de meses de terapia e de acompanhamento psiquiátrico foi difícil me derrubar. Passei um bom tempo lidando muito bem com meus demônios, a ponto de convidá-los para um café com bolo no meio da tarde.
Até a pandemia me proporcionar uma viagem no tempo e começar a sentir todos aqueles sintomas outra vez. Em certa medida, deu pra sentir o retorno paulatino. Meus anos de estudante na França camuflaram a minha condição de imigrante. Como se tivesse usado o mecanismo de defesa de certos bichos para fingir naturalidade e agir como se fizesse parte daquele universo. Funcionou bem pois em teoria é muito fácil ser estudante e se adaptar aos moldes da academia em qualquer lugar do mundo. O mesmo serve para um estágio – eu era considerada uma estudante inexperiente independente da minha idade e experiência profissional prévia, e fui tratada como tal.
Embora a mudança para a Holanda tenha sido embalada de muita felicidade e acolhimento, não tardei a cair na real. Desaprendi muito sobre o ato de me camuflar pois até então nunca havia sido uma extensão de alguém, tampouco havia precisado viver num local onde não dominava a língua. Estar desempregada e ter dificuldades para me conectar com os residentes deste novo país provocou danos pesados ao meu estoque de energia. Adicione nesta conta este tempo indefinido e cada vez mais fluido da pandemia, a incerteza de quando poderia ver meus pais ou meus amigos outra vez. Não tardaria a dar um pane no sistema.
Consegui um emprego depois de um ano inteiro que se arrastou, um band-aid temporário que serviu para apaziguar alguns dos meus anseios. Porém a pandemia não acabou, e todas as incertezas e seguranças que já vinha carregando desde a minha mudança pra Holanda continuaram pairando por ali. Quando minha analista mencionou a possibilidade de consultar meu psiquiatra outra vez, houve resistência, pois na minha cabeça nunca mais precisaria de medicação outra vez. E embora estejamos de saco cheio de fazer tudo online, confesso ter sido um alívio conseguir entrar em contato com meu médico que segue atendendo em São Paulo e fazer minha consulta normalmente, podendo colocá-lo em contato com meu clínico geral daqui para fazer um bem bolado e acelerar o início do meu tratamento.
O remédio não vai apagar os meus problemas e transformar minha vida num parque de diversões. Meu psiquiatra é bem pé no chão e antes de falar sobre a medicação me passou mil recomendações sobre cuidados a serem levados em conta. As dicas são as mesmas de 2016 e envolvem cuidar da alimentação, reduzir a cafeína e o álcool e praticar atividade física diariamente. Como ele bem disse, de nada adianta tapar os buracos com uma medicação sem cuidar de toda a engrenagem que ajuda tua máquina a rodar. Sempre me doei muito e estou pronta a me desdobrar para ajudar os outros, mas me colocar como prioridade ainda é um desafio.
Se você caiu neste post por um acaso e sente necessidade de conversar com alguém sobre saúde mental, pode me mandar um e-mail. Conversaremos de forma anônima. Não sou especialista em saúde mental, tampouco tenho soluções mágicas, mas é sabido que dialogar sobre nos ajuda a ter um pouco mais de clareza e conquistar segurança na hora de buscar ajuda. Meu médico reforçou o quanto neste momento, mais do que nunca, é preciso unir forças e cuidar dos nossos, mesmo com as limitações de encontros físicos. Da minha parte, posso afirmar: enquanto estava prestes a me desintegrar de tanto passar nervoso nesta pandemia, poder desabafar com pessoas próximas foi um grande respiro. A dor não desaparece, mas fica menos latente. Dadas as proporções, este texto é uma forma de deixar um espaço de diálogo aberto a quem quiser conversar sobre – como fiz em algum momento do passado ao narrar minha experiência com o DIU mirena.
Já escrevi muito sobre saúde mental tanto aqui quanto na minha falecida newsletter, mas se não me falha a memória nunca abordei a questão da medicação de forma tão aberta. Decidi escrever algumas linhas sobre o tema pois vai ser uma forma de acompanhar meu progresso e observar se estou, de fato, progredindo e cuidando de mim de alguma forma.
Tenho rascunhado este texto há um tempo, pois, mais uma vez, ainda é delicado falar sobre o tema. Mas estou curiosa para observar a evolução do meu tratamento. Vem comigo?