No meio da viagem no tempo tinha um coelho esquisito

Passei anos resistindo ao ato de rever filmes, tudo por pura preguiça. Nada de novo sob o sol, como diria Caetano Veloso. Até juntar meus trapinhos com uma pessoa que adora rever seus filmes prediletos E ficar presa em uma pandemia eterna algum tempo mais tarde. De tanto repetir os dias me apeteceu a ideia de revisitar algumas joias da minha adolescência e olha só, quem diria, tenho achado a experiência maravilhosa. Alguns destes títulos ainda tenho em DVD, perdidos em alguma caixa na casa dos meus pais, mas como eles seguem a um oceano de distância me viro como posso com os serviços de streaming. Uma tarefa por vezes hercúlea. Um lado meu quer muito dar uma chance às novas produções, outro prefere o conforto de revisitar lugares conhecidos.

Sendo deveras sincera, dá para sentir que a prioridade do momento é financiar um monte de filmes sem alma. Neste caso fica mais fácil partir para uma obra que já assisti algumas vezes, ou que foi lançada há bastante tempo e ainda não tive ocasião de assistir. Quiçá o problema more em mim, e meu brilho nos olhos se dissipou de tanto ler notícias, minando também minha capacidade de me envolver o suficiente com obras ficcionais inéditas.

Tive também uma influência externa: o podcast Segunda Mão, de Jessica Correa e Thiago Guimarães. Me enchi de doses de nostalgia enquanto eles papeavam sobre alguns clássicos dos anos 2000, até chegar no episódio sobre Donnie Darko (2001, direção de Richard Kelly), que me arrebatou sem dó nem piedade.

Não me sinto apta a dizer do que se trata sem dar spoilers. Isso me levou a questionar o que seria um spoiler de Donnie Darko e se existe uma explicação lógica para o filme. Há muito conteúdo interessante nos textos e vídeos que buscam explicar o final, mas quando uma história gira em torno de conceitos sobre viagem no tempo e tem uma pegada de ficção científica, seria um erro se ater tanto aos detalhes. Minha expectativa ao rever Donnie Darko era embarcar na brisa do filme e deixar espaço para criar umas teorias malucas na minha cabeça.

O longa foi lançado nos anos 2000, mas se passa nos anos 80. Tem uma ambientação meio cafona, típica do período, e uma trilha sonora isenta de defeitos. Nasci em 91, então não posso dizer que vivi e tenho lembranças da década de 1980. Mas vi muitos filmes e videoclipes deste período e posso dizer que Donnie não deixa a desejar e passa muito bem como uma história que poderia ter acontecido naquele período. Até os cortes de cabelo e penteados reforçam o cenário! A sequência de abertura ao som de The Killing Moon me deixou arrepiada. Nos primeiros minutos do longa já deu para sentir que aquela seria a minha viagem no tempo, com destino final a minha pré-adolescência.

O protagonista, que dá nome ao filme, toma remédios e faz acompanhamento com uma psicóloga. Não sabemos exatamente o que ele tem, embora haja uma leve menção a uma possível esquizofrenia. Ele possui uma aura melancólica, mas é um jovem desbocado. Dando um pouco mais de contexto, ele ainda está na escola. Aquele típico cenário de high schools americanas, onde meninos e meninas tidos como esquisitos sofrem bullying e os rapazes ‘descolados’ (estou usando gírias de velhos propositalmente) se sentem os donos do pedaço (eu avisei). Os docentes parecem advir de meios conservadores, e reproduzem isso no comportamento escolar. Donnie está cagando para todos eles, e rebate adultos e adolescentes quando o convém.

Conforme a história progride, fica evidente o quanto todo mundo está, de alguma forma, perdido ou angustiado. Durante diversas passagens senti vontade de dar um abraço ou um chacoalhão em alguns personagens, esquecendo até de me questionar sobre o que raios este cara fantasiado de coelho pretende fazer. Sentir a melancolia destes seres perdidos bateu com força a ponto de não me parecer relevante questionar se o coelho era real ou uma mera projeção da cabeça afetada de Donnie. A tal velha maluca, por sinal, me deixou com o coração apertado na cena em que ela se aproxima de Donnie e anunciar que todo ser vivo neste planeta morre sozinho. Coloquei a tradução em itálico porque o print está com legenda em holandês, eu sei, faço uns esforços doidos nesta vida às vezes (mas isso é assunto para outro post).

Enquanto adolescente, devo ter falado sobre a genialidade deste filme a todos que me perguntassem, ou o quanto me impressionei com a forma como o conceito de viagem no tempo aparece tão carregado de melancolia. Revendo agora, aos 30, quase não abri os olhos para o aspecto e ficção científica do negócio. Acabei o longa triste e abatida. Por mais esquisito que Donnie seja, me apeguei e sofri junto. Por mais debochado e nem aí que ele aparente ser, ele sente demais o quanto o mundo o afeta, e reforça o quanto a transição da adolescência para a vida adulta pode doer. Dói tanto que talvez valha o sacrifício de dar fim à própria vida para não precisar ultrapassar esta passagem até o ponto final.

Donnie ainda consegue expressar muito do que lhe congestiona o peito, enquanto acompanhamos os adultos engolindo o seco e silenciando, muitas vezes, o que poderiam expressar para dar fim a diversos pequenos problemas. Dentro do núcleo adulto dá para sentir o quanto pequenos conflitos internos não resolvidos se acumulam a ponto de te deixar sem alternativas além de dar um grito alto que talvez não resolva o problema, mas ajuda a aliviar todas aquelas dores internas. Drew Barrymore, maravilhosa, eu gritei junto com você nesta sequência:

Depois de ficar em frangalhos com minha experiência Donnie Darko, precisava de um pouco de sol. Por algum motivo obscuro essa história de viajar no tempo sem um mega fundo científico me levou a De Repente 30 (2004, de Gary Winick).

Vamos voltar aos meus primeiros anos de adolescência. Até meus 13 anos assistia filmes por diversão. Tinha minhas preferências, é claro, só o dono da única locadora de Cassilândia sabe a quantidade de fitas VHS com musicais da Disney que devolvi prontamente rebobinadas. Entretanto na transição dos 13 aos 14 já morava na capital, onde o acesso a cultura era maior e passei a encarar o cinema com outros olhos. Na época, passei tardes inteiras trocando ideais e referências com os atendentes da finada MB locadora. Era bom demais estudar só pela manhã e ter tempo livre de sobra, inclusive saudades.

Graças a eles assisti a uma caralhada de filmes, digamos, conceituais. Era uma fase de descoberta, talvez tenha visto muita coisa que na época me pareceu cabeçuda demais e não entendi nada (oi, Lynch). Porém descobri o trabalho de diversos diretores que encontraram um lugar especial no meu coração e desde então não deixei de acompanhá-los. Foi uma fase importante, é fato. E se Donnie Darko entrou no hall de preciosidades cinematográficas, De Repente 30 cairia por terra nos meus critérios. Mas me encontrava em transição, e minha personalidade ainda confusa deixava passar muitos filmes considerados toscos pelos intelectuais. Coincidentemente, o longa foi lançado quando eu também tinha 13 anos como a protagonista, Jenna, e me achava madura demais para a minha idade. Passava horas confabulando sobre o meu futuro brilhante como escritora, mentalizando thirty, flirty, and thriving com a mesma veemência de Jenna.

Tantos anos mais tarde com 30 anos recém-completos, estou bem longe de qualquer prosperidade, e embora tenha encontrado um rapaz muito especial e esteja comprometida, se houve algo que quase não fiz ao longo destas três décadas de existência foi flertar. Quiçá por não ter passado nem perto desta glória pela qual Jenna tanto aspirava, me pareceu simbólico pegar o filme para rever agora, nesta última curva antes dos 30.

Ouso dizer: De repente 30 é uma explosão de amorzinho e felicidade se colocado ao lado de Donnie Darko. Porém Jenna precisa passar por um purgatório semelhante ao de Donnie durante o colégio. No alto dos meus vinte e tantos, agora consigo olhar e achar ridículo esse esforço débil que muitas pessoas como eu empreendiam para fazer parte de algo com o qual, na maior parte do tempo, tampouco nos identificávamos. Algo em minha mente dizia que se eu me desse bem e, com alguma sorte, se fizesse parte do grupo das meninas populares, ganharia uma proteção automática anti-julgamentos, ignorando por completo o fato de que eu não tinha cacife para arcar com a realidade daquelas moças. Era branca desbotada feito um palmito como elas, um senhor privilégio, porém não tinha cabelos lisos, era rechonchuda, não gostava de fazer as unhas, andava com roupas largadas (uma taurina apaixonada pelo conforto desde os primórdios) e não me sentia nada pronta para FLERTAR. Preferia esconder meu rosto atrás de um livro a encarar todos os possíveis julgamentos e testes sociais que me seriam colocados a prova.

Jenna também queria ser popular e aceita e achava um rapaz bonito só porque enfiaram em sua cabeça que ele era charmoso. Por não alcançar este patamar e de tanto se esforçar sem sucesso algum, seu escape passa a ser este sonho de ser adulta. Com 30 anos, sedutora e próspera. Tudo isso para viajar no tempo, desembarcar nos 30 e perceber o quanto as nuvens carregadas de tempestade encontram seu caminho dos 13 aos 30 sem muito esforço. Os tão sonhados 30 anos carregam suas dores e nem tudo são flores como a inocente mente imaginativa de Jenna esperava.


Impossível ignorar o fator comédia romântica da trama. Ela gira em torno da ideia de valorizar os pormenores de cada etapa das nossas vidas, de não tentar acelerar os processos e nunca fechar os olhos para quem te demonstra afeto em detrimento a um mero desejo de validação social. O final é feliz e ensolarado, diferente de Donnie Darko, mas esses tapas na cara da vida adulta doeram com mais força agora que me vejo na outra extremidade do título do filme. 

Ser adulto significa assumir uma porrada de responsabilidades, quando lá no fundo nós só queríamos sentar num cantinho e pedir para alguém resolver as coisas por nós. E este foi de longe o fator que mais mexeu comigo ao rever o filme. Embora não viaje no tempo, às vezes tenho a sensação de ter dormido com treze anos e acordado no meu corpo com trinta. Tudo isso pois em diversas ocasiões me senti uma impostora ao tentar agir como uma adulta, como se nunca tivesse estado pronta de verdade para encarar este papel. Sabe quando você assina um documento importante ou assume um novo cargo na empresa? E bate aquela sensação de “como é que fui parar aqui, eu só tenho 13 anos”? Pois então.

Sempre me emociono ao ouvir Vienna, de Billy Joel, e sem nenhuma surpresa chorei copiosamente com a sequência do filme, da qual já nem me lembrava mais. Slow down you crazy child, you’re so ambitious for a juvenile. But then if you’re so smart tell me, why are you still so afraid? A letra inteira é aquele chacoalhão delicado que nos faz mandar o pé no freio e repensar esse ritmo frenético no qual nos colocamos, em uma tentativa por vezes difícil demais de deixar certos processos se darem no seu tempo.

Com trinta anos recém-completos enfim tomei consciência deste fato, e minha meta é colocá-lo em prático. Afinal, é normal sentir medo de tomar decisões importantes e fazer as coisas por nossa própria conta. Posso dizer por experiência própria: mesmo quando era uma pessoa fitness, era difícil levantar peso sem técnica, sozinha. Completar um número x de repetições sem fazer careta? Impossível. Dói mesmo, e carregar estes pesos da vida adulta é natural. Só não pode se transformar em um freio que nos impede de avançar.

Meu reencontro com Jenna e Donnie foi um lembrete sobre a importância de respeitar – e muitas vezes desacelerar – o processo. E dar mais espaço às emoções. Pois sentir é um negócio ridículo mesmo, e a gente precisa se expor a esses papelões para conseguir se ouvir melhor. Conquistar nossos jovens interiores, fazer as pazes para criar uma estrutura resistente, forte, que usa a própria vulnerabilidade para crescer e nos tornarmos adultos funcionais (e não muito perturbados, diga-se de passagem).  

Desalinho mental e todas aquelas coisas das quais não gosto de falar publicamente

Arte de Victoria Rivero

Desde muito jovem desenvolvi o hábito de rir da própria desgraça. Algumas linhas da psicologia chamam isso de chiste, e podemos traduzir como o famoso risos nervosos. Se eu estava angustiada ou com medo, soltava uma gostosa gargalhada. Lembro-me de uma vez em que estava viajando de avião com a minha mãe e, em meio a uma turbulência, a nave perdeu um pouco da pressurização. Tive uma crise de risos. Não é algo controlável, simplesmente acontece. Nunca vou me esquecer da cara da moça na fileira ao lado da nossa, que esmagava um terço com entre as duas mãos, chorava e olhava horrorizada para esta mulher doida do riso incontrolável. Me senti muito mal durante este episódio, pois não queria soar desrespeituosa. O máximo que consegui fazer com o mínimo de sucesso foi tapar a minha boca.

Este incidente diz muito sobre o meu jeito de levar a vida. Assumo o riso descontrolado como uma bomba relógio, até chegar o momento a explosão, quando baixo a guarda e tenho aquela crise de choro que me deixa com as pálpebras doloridas. Estes são meus escapes mais fortes. Já tive minhas fases de comer e beber para acalmar as mágoas, porém na maior parte do tempo oscilo entre os risos nervosos e a choradeira ilimitada.

Afinal, cada pessoa encontra a saída mais fácil e conveniente para suas necessidades do momento. Porém vejo o receio em falar sobre saúde mental como um traço compartilhado comum entre muitas pessoas neuroatípicas. Pois não é fácil expor algo tão sensível. Minha intenção não é reduzir o peso de outras doenças, tampouco de colocar diferentes níveis de dor em uma balança. Porém é curioso notar o quanto costuma ser mais fácil anunciar o diagnóstico de uma doença “clássica” do que assumir o tratamento de um problema psicológico.

Comecei a fazer psicanálise em 2015 e isso aflorou muita coisa que passou anos entalada na garganta. Começou com um processo muito doloroso, mas sentia aos poucos o quanto progredia e me reconstruía mais forte. Até ter uma recaída ainda no primeiro semestre de 2016, quando comecei a ter alguns sintomas de ansiedade. Minha primeira lembrança remete a um dia normal de trabalho quando, sem nenhum gatilho aparente, comecei a suar frio e ter taquicardia. Pensei ser algo pontual, porém além de se repetir incontáveis vezes, o quadro só piorou ao longo das semanas. Passei umas boas sessões mapeando estes sintomas com minha analista, até ela manifestar que talvez fosse o caso de consultar com um psiquiatra. Aquele não seria meu primeiro encontro com a psiquiatria. No meu primeiro contato, em 2014, o acompanhamento médico deixou um legado digamos traumático. As circunstâncias pouco ajudaram, pois na época não houve nenhuma assistência psicológica e eu só queria uma solução prática para conseguir sair da minha cama e seguir com as obrigações de vida adulta que, naquele ponto, tomavam proporções cada vez mais sérias.

Ouvir de minha analista que precisaria consultar um psiquiatra foi difícil, mas acabei cedendo. Busquei especialistas, li uma caralhada de avaliações antes de marcar a primeira consulta. Por sorte o santo bateu de imediato, facilitando minha vida e me poupando de sair em busca de um psiquiatra minimamente coerente. Depois de um ano sendo acompanhada por ele, recebi alta ainda no primeiro semestre de 2017. Mais uma vez, as circunstâncias eram favoráveis até demais. Começava a preparar minha mudança para França, havia concluído minha inscrição no mestrado e só aguardava o famigerado visto. Essa sensação boa de realizar um sonho me anestesiaria por muitos meses. De qualquer forma, eu havia me preparado para aquilo. Depois de meses de terapia e de acompanhamento psiquiátrico foi difícil me derrubar. Passei um bom tempo lidando muito bem com meus demônios, a ponto de convidá-los para um café com bolo no meio da tarde.

Até a pandemia me proporcionar uma viagem no tempo e começar a sentir todos aqueles sintomas outra vez. Em certa medida, deu pra sentir o retorno paulatino. Meus anos de estudante na França camuflaram a minha condição de imigrante. Como se tivesse usado o mecanismo de defesa de certos bichos para fingir naturalidade e agir como se fizesse parte daquele universo. Funcionou bem pois em teoria é muito fácil ser estudante e se adaptar aos moldes da academia em qualquer lugar do mundo. O mesmo serve para um estágio – eu era considerada uma estudante inexperiente independente da minha idade e experiência profissional prévia, e fui tratada como tal.

Embora a mudança para a Holanda tenha sido embalada de muita felicidade e acolhimento, não tardei a cair na real. Desaprendi muito sobre o ato de me camuflar pois até então nunca havia sido uma extensão de alguém, tampouco havia precisado viver num local onde não dominava a língua. Estar desempregada e ter dificuldades para me conectar com os residentes deste novo país provocou danos pesados ao meu estoque de energia. Adicione nesta conta este tempo indefinido e cada vez mais fluido da pandemia, a incerteza de quando poderia ver meus pais ou meus amigos outra vez. Não tardaria a dar um pane no sistema.

Consegui um emprego depois de um ano inteiro que se arrastou, um band-aid temporário que serviu para apaziguar alguns dos meus anseios. Porém a pandemia não acabou, e todas as incertezas e seguranças que já vinha carregando desde a minha mudança pra Holanda continuaram pairando por ali. Quando minha analista mencionou a possibilidade de consultar meu psiquiatra outra vez, houve resistência, pois na minha cabeça nunca mais precisaria de medicação outra vez. E embora estejamos de saco cheio de fazer tudo online, confesso ter sido um alívio conseguir entrar em contato com meu médico que segue atendendo em São Paulo e fazer minha consulta normalmente, podendo colocá-lo em contato com meu clínico geral daqui para fazer um bem bolado e acelerar o início do meu tratamento.

O remédio não vai apagar os meus problemas e transformar minha vida num parque de diversões. Meu psiquiatra é bem pé no chão e antes de falar sobre a medicação me passou mil recomendações sobre cuidados a serem levados em conta. As dicas são as mesmas de 2016 e envolvem cuidar da alimentação, reduzir a cafeína e o álcool e praticar atividade física diariamente. Como ele bem disse, de nada adianta tapar os buracos com uma medicação sem cuidar de toda a engrenagem que ajuda tua máquina a rodar. Sempre me doei muito e estou pronta a me desdobrar para ajudar os outros, mas me colocar como prioridade ainda é um desafio.

Se você caiu neste post por um acaso e sente necessidade de conversar com alguém sobre saúde mental, pode me mandar um e-mail. Conversaremos de forma anônima. Não sou especialista em saúde mental, tampouco tenho soluções mágicas, mas é sabido que dialogar sobre nos ajuda a ter um pouco mais de clareza e conquistar segurança na hora de buscar ajuda. Meu médico reforçou o quanto neste momento, mais do que nunca, é preciso unir forças e cuidar dos nossos, mesmo com as limitações de encontros físicos. Da minha parte, posso afirmar: enquanto estava prestes a me desintegrar de tanto passar nervoso nesta pandemia, poder desabafar com pessoas próximas foi um grande respiro. A dor não desaparece, mas fica menos latente. Dadas as proporções, este texto é uma forma de deixar um espaço de diálogo aberto a quem quiser conversar sobre – como fiz em algum momento do passado ao narrar minha experiência com o DIU mirena.

Já escrevi muito sobre saúde mental tanto aqui quanto na minha falecida newsletter, mas se não me falha a memória nunca abordei a questão da medicação de forma tão aberta. Decidi escrever algumas linhas sobre o tema pois vai ser uma forma de acompanhar meu progresso e observar se estou, de fato, progredindo e cuidando de mim de alguma forma.

Tenho rascunhado este texto há um tempo, pois, mais uma vez, ainda é delicado falar sobre o tema. Mas estou curiosa para observar a evolução do meu tratamento. Vem comigo?

teia de aranha

Me intriga encontrar pedaços de teia de aranha no meio da parede. Como foram parar ali? Antes de aspirar me aproximo, tento olhar de perto e ver se há ligação com o solo de alguma forma ou se vem de cima. A luz amarelada me confunde, parece me mostrar a origem da teia no ponto onde as duas paredes se encontram. Mas é falso. Deve ter rolado do teto e pregado a poucos centímetros do chão, ou foi minuciosamente tecido para existir como ponto solto mesmo. Se antes morria de pavor de aranhas, agora aprendo a conviver com as espécies de apartamento, daquelas quase invisíveis e meio sorrateiras. Que amam espalhar suas teias em cada canto da casa, dessas que a gente pensa dominar e conseguir eliminar com alguma frequência e, indo na contramão do nosso desejo de organização e limpeza, seguem tomando conta e te lembrando do quão impossível é manter uma casa nos trinques.

Casas e apartamentos no térreo favorecem a proliferação de aracnídeos? Me pego às voltas com essa questão em mente pois não me lembro de ter visto uma aranha sequer no apartamento antigo, que ficava no segundo andar. Ou seria uma coisa do bairro? Fiz inúmeras mudanças ao longo dos anos, mas na maior parte do tempo foi de uma cidade para outra. Curioso observar o quanto o ‘bioma’ da casa muda tanto de um bairro para outro, com pouco menos de 2km de distância entre si.

A sensação térmica lá fora é de -5 e minha vontade é de passar alguns minutos com as mãos dentro de uma bacia com água escaldante. Sinto muito frio na ponta dos dedos e crio vontades pouco condizentes com a minha rotina, que me mantém isolada em casa e quase não me força a sair. A pele do meu rosto aos poucos se esquece da textura de uma base líquida e de um corretivo, e cada vez mais abro mão de me adornar com acessórios. Em um desses impulsos para relembrar o ato de se enfeitar tentei colocar um anel ajustável só para testar e notei meus dedos mais grossos. De tanto trajar moletom mal percebi quando meu corpo considerou por bem expandir seus horizontes. A pele foi encontrando seu jeito de existir dentro dessas novas condições, esticando cada vez mais e acomodando cada parcela de angústia em proporções físicas. Assim como as teias de aranha, preciso de tempo para aceitar transformações que tanto me impactam visualmente.

Na minha cabeça danço Ingenue, de Atoms for Peace, do jeito mais desajeitado possível. Movimento antes repetido com frequência no chão da sala do meu antigo apartamento de São Paulo. Colocava o clipe na tevê e ficava me movimentando livremente de um canto ao outro, sem nenhuma consciência do desenrolar dos meus gestos. O ritmo da cidade me cansava, este dançar desordenado era meu escape. Devo ter recusado inúmeros convites para sair só para ficar ali comigo mesma. Sem energia para colocar o nariz pra fora de casa e me expor a 30 variações de pânico, mas com disposição suficiente para me levantar do sofá e conduzir meu próprio anti-espetáculo. Quantas vezes honrei cada minuto de descanso enfiada dentro daqueles 50 m2 sem ter a menor ideia de que dali alguns anos isso se tornaria uma obrigação.

Pego meu Kindle e me acomodo no sofá de um apartamento bem maior do que aquele de São Paulo, um canto que apesar de estar repleto de confortos, não me inspira a dançar desajeitada pelos cantos. Tenho perdido tempo demais com as teias de aranha. Tento me conectar com algum vestígio do meu eu do passado, em uma busca incansável por força de vontade e meios para evitar sufocamento em condições adversas.

Atravesso os dias sem graciosidade alguma. Desordenada tanto quanto minha coreografia de Ingenue. Rabiscando folhas de papel dia após dia enquanto me pergunto se um dia vou deixar de notar e me incomodar com as teias de aranha.

Assistindo: Le Père Noel est une ordure, de Jean-Marie Poiré

Eu me propus a falar mais sobre livros, filmes e músicas neste espaço. Para obter algum progresso, resolvi me deixar livre para comentar conforme a necessidade. Os posts podem ser curtinhos, bem no modo “comentário breve para não me esquecer”, ou podem render uma reflexão mais demorada. Explico de antemão para evitar expectativas. Ao mesmo tempo, reforço o propósito inicial dos blogs, lá da época em que surgiram – fazer disso aqui um diário virtual onde nos damos liberdade para falar sobre o que der na telha e conforme nossa necessidade. Vamos lá?

Todo o charme do cinema francês

É controverso amar o cinema francês. De minha parte, sempre tive um interesse. É um jeito peculiar de filmar e contar histórias. Impossível ignorar também o legado das produções francesas para a sétima arte. Eles merecem certas honrarias, é fato. Na minha fase mais pretensiosa da adolescência rasgava elogios e declarava meu amor pela Nouvelle Vague aos quatro ventos, enchia a boca para falar sobre as nuances percebidas em cada título de Godard que havia conferido. Este interesse inicial evoluiu para um olhar mais atento a cada nova obra francesa em cartaz. As produções da França acabavam me sendo atribuídas quando escrevia críticas, e, naquela ocasião, acabei assistindo muitas comédias. O humor francês é um tanto peculiar, e me intrigava o quanto boa parte das comédias não eram nada engraçadas.

Fui entender melhor essa pegada depois de conviver de perto com os franceses. Quando me mudei para Montbéliard, na França, já tinha minhas preferências cinematográficas definidas e minha curiosidade só cresceu com o tempo. Segui assistindo de um tudo, mas notei que me faltavam algumas referências. Muito da cultura francesa deriva de filmes clássicos para eles. Assim como nós temos nossas piadas internas e expressões que derivam de títulos da Sessão da Tarde. Para preencher essa lacuna e sabendo que meu parceiro gosta de rever filmes, pedi a ele que me apresentasse alguns destes clássicos. Ri sem respeito algum de Le Dîner des Cons, de Francis Veber, e de La Cité de la Peur, de Alain Berbérian. O terceiro da fila, Le père Noel est une Ordure, de Jean-Maarie Poiré, chegou com menos força e me deixou com sentimentos confusos.

Sucesso absoluto na tradução do título

Conforme mencionei, o humor francês é peculiar. Le Dîner des Cons e La Cité de la Peur são cheios de sacadas geniais, mas possuem enredos toscos de propósito. As situações são ridículas e absurdas, mas coerentes com a zona a que se propõem. Le père Noel est une Ordure começa na mesma linha e tinha tudo para me fazer chorar de rir como os outros dois, mas acabou me incomodando com algumas questões. O protagonista se veste de Papai Noel para distribuir panfletos em uma região bem movimentada de Paris, e acaba mantendo o traje em todas as sequências. Como o título indica, é um picareta, e isso é posto em evidência ao longo do narrativa. Ele vai crescendo em picaretismo. E por isso a tradução do título em português tem uma sacada genial. Se traduzirmos ao pé da letra, o título seria “O Papai Noel é um Lixo”. Não deixa de ser verdade, mas a versão brasileira é mil vezes mais coerente com a proposta.

Pois falemos sobre o longa

O longa é politicamente incorreto e narra uma sequência de absurdos. Félix, o tal Papai Noel picareta, fica entre idas e vindas com sua companheira, Josette. Ele usa de suas picaretagens para conseguir comida e algum dinheiro, pois vive em um barraco com seus coelhos (!). Por intermédio de Josette, conhecemos dois funcionários de uma espécie de CVV francês, Thérèse e Pierre. A coordenadora deles, Marie-Ange, desencadeia uma das intrigas principais da trama quando, na véspera do Natal, despede-se de Thérèse e fica presa no elevador ao tentar partir.

O enredo acaba sendo sobre como um contratempo pode puxar outro e criar uma espiral infinita de desgraças. E o cômico dele é ingrato, as falas não perdoam. Perdi a conta do número de vezes em que repeti “eles não vão fazer isso”, e fizeram. Em uma das passagens Pierre “defende” Thérèse dizendo que ela não é feia, só possui um físico difícil. Essa citação diz muito sobre o tom do filme.

O meu incômodo veio na personagem de Zadko, julgado sem respeito algum. Tirar sarro do sotaque, mesmo? Idem para Katia, um retrato extremamente homofóbico de uma mulher trans. A proposta, como o próprio título anuncia, é abusar do humor negro e colocar em evidência o quão absurdo (e podre, diga-se de passagem) o ser humano pode ser. Daí vejo o ano de lançamento: 1982. Posto o contexto do período fica mais fácil abstrair alguns aspectos. Soa até ousado para o período, dado o teor das piadas. Também levo em consideração o fato de ser uma releitura de peça de teatro. Não deixa de ser uma adaptação bem sucedida se levarmos em consideração que nem sempre é fácil transport a linguagem teatral para a sétima arte.

Gostei com ressalvas. Me fez rir e me deixou nostálgica dos primeiros dias morando na França, quando ainda me chocada com alguns absurdos da cultura local. Se você tem curiosidade em conhecer mais sobre a base da comédia no cinema francês, pode ser uma boa pedida.

Nota: 5/10

A brisa do ano que (não) foi

Sem nenhuma surpresa vi as festas de fim de ano chegarem ausentes de qualquer empolgação durante os últimos suspiros de 2020. Estou longe de ser a pessoa mais cheia de expectativas com celebrações de Natal e ano novo, mas confesso que me abalou a inexistência de qualquer clima de renovação por essas bandas. E veja bem, questionei algumas tantas vezes, comemorar o que em um ano onde nada aconteceu? Ok, aconteceram coisas, a vida não ficou em suspenso durante os meses de pandemia, mas foi preciso lidar com diversas formas de adaptação e repensar nossa forma de reagir a tudo. Embora tenha parecido lento e desencadeado crises pessoais monstruosas, não vi o tempo passar. Pisquei e estávamos em dezembro, mês mais movimentado do meu humilde vinteevinte. Experimentei a sensação de que absolutamente todas as coisas possíveis acharam por bem dar as caras no mês 12, como se fosse socialmente aceito adiar os planos ao longo de meses e aparecer sem nem marcar horário com antecedência. Fui pega de surpresa e pensei que o surto viria, mas no fim das contas foi excelente ter uma oportunidade de ouro para fechar meus olhos e não precisar balancear as perdas e ganhos de 2020 no momento em que esperam que a gente o faça.

No fim de 2019 uma amiga fez uma sequência de stories falando sobre o YearCompass, uma espécie de guia que te ajuda a envelopar o ano que passou e preparar o que está para começar. Fiz o meu cheio de esperanças e sem ter uma mínima ideia da pandemia que nos observava de espreita perto dali. Foi curioso repassar por ele na hora de fazer a versão deste ano. Como perdi o clima de festividades, tomei igualmente meu tempo para planejar 2021 usando o YearCompass. Não sou tilêlê good vibes only e longe de mim fazer um textão falando sobre o quão enriquecedor foi passar por uma pandemia, mas tampouco sou ingrata. Repassei os últimos meses com um sorriso no canto do rosto ao pensar que, no fim das contas, coisas muito boas aconteceram APESAR da pandemia. As coisas ruins serviram de referência e lição, porém estou feliz em saber que agora elas representam capítulos encerrados e engavetados.

Antes do confinamento até tive a possibilidade de viajar algumas vezes e ver alguns shows! As restrições serviram de deixa para conhecer outras cidades nas imediações, o famoso “turistar sem sair de casa”. Passei mais tempo com meu parceiro, melhoramos nossas habilidades na cozinha, comecei a aprender holandês e perdi meu medo de andar de bicicleta. Os primeiros meses de pandemia esvaziaram as ruas de Haia, ocasião perfeita para as minhas poucas excursões para fora de casa fossem feitas de bike. Perdi o medo a tal ponto que já fui e voltei de outras cidades só de bicicleta. Foi uma significativa conquista pessoal.

Das minhas tradições de outros tempos, mantive apenas o apetite musical. Além de acompanhar meus artistas favoritos gosto de conhecer sons novos – o Descobertas da Semana do Spotify é meu melhor amigo – e se teve algo que fiz ano passado foi ouvir música. Magdalene, de FKA twigs foi meu álbum o ano, mas ouvi Barefoot in the park, parceria de James Blake com Rosalía, mais vezes do que poderia ser considerado saudável. Vi um campo de possibilidades para o cinema e a literatura, mas com o início da pandemia desacelerei o ritmo até parar por completo. Busquei me organizar melhor para mudar este cenário em 2021, pois sinto falta de livros povoando meu cotidiano. O nível de saudade dos filmes é o mesmo, porém já faz uns bons cinco anos que me desorganizado e nunca tiro um tempo para assistir algo em casa com a frequência que gostaria. A verdade é que ando com muita saudade de ir ao cinema. Tenho minha assinatura mensal e poderia ver até um filme por dia se quisesse, mas os cinemas seguem de portas fechadas por aqui. Um dos meus planos envolve, inclusive, aproveitar melhor este espaço para compartilhar o que tenho ouvido, lido e assistido.

Neste momento, quase um mês depois de começar um novo emprego, algumas das dores colocadas em evidência ao longo da pandemia seguem pungentes. É difícil, contudo, admitir. Conquistar confiança em si é algo que toma seu tempo e soa lento demais. É como caminhar com o diabo e o anjo dos grandes clichês, um em cada ombro, com um lado que te lembra do quanto você é batalhadora e forte, e com o outro te dizendo para baixar a bola porque você não é esse cabernet sauvignon todo (sim, eu usei vinho no lugar da coca pois odeio coca-cola). Meus contratempos são um nada perto das dores de quem foi muito impactado pela pandemia. Mas isso não é uma competição e não conseguiria fechar meus olhos para meus incômodos nascidos ou incitados pelo confinamento.

Por outro lado, tenho tentado pegar na minha mão e repetir todas as minhas vitórias – mesmo aquelas de antes da pandemia. Saí do interior e soube achar meu rumo em São Paulo, trabalhei com muita coisa legal, fiz um mestrado em outra língua, mudei de país duas vezes, tudo isso estando cada vez mais longe fisicamente de pessoas que não sei quando poderei ver outra vez. Tenho em mim muita força, embora sempre acabe fechando os olhos para ela nos momentos mais desafiadores. Depois de um período considerável sem traçar metas para o ano seguinte, quero arriscar um salto mais alto. Sei o quanto é característico se encher de esperanças e bolar mil planos a cada janeiro, mas ainda é uma boa deixa para botar a mão na massa e enfim me mover para tirar algumas ideias do papel. Deixo público para voltar aqui quantas vezes por necessário para ter algum alento quando der vontade de desistir.

De pouco em pouco quero me desligar de vez de opiniões alheias, parar de pesar e questionar tanto meu discurso antes de dar corpo ao que está aqui dentro, e dar total liberdade ao meu sentir. Deixar as coisas saírem e saber encontrar o caminho de volta para mim quando for hora para isso.

Corona Diaries #11

A arte é de Brit K Caley e você pode encomendar um print dela aqui.


A neblina me roubou toda a inspiração e está pronta a tomar conta de tudo nesta manhã. Do meu terraço é como se o New Babylon nem existisse. Uma parte dos prédios que consigo avistar do janelão de casa também sumiu de vista. O inverno começa oficialmente na última metade de dezembro, mas o fim de novembro já anuncia o que nos aguarda para a nova estação. A diferença de duas semanas para cá é significativa. Vez ou outra saio para caminhar (às vezes corro) pouco depois de acordar e minhas roupas tem parecido leves demais para aguentar a garoa fina dessas manhãs que despertam cada vez mais preguiçosas. Vai começar a temporada dos prints de temperaturas negativas ou bem próximas de zero. Cresci em um lugar quente demais para não me impressionar e printar temperaturas que eu jamais sentiria na pele caso tivesse continuado por lá. Muita gente faz igual, é aquela coisa: a gente pega o tal título de expatriado e depois de anos corridos ainda nos impressionamos com coisas ditas banais.

As temperaturas caem e o sol também não está muito aí para os mortais. Por volta das 17h o céu já está tomado pela escuridão. O boato da depressão invernal é real. A ausência de sol deprime e nos deixa enlouquecidos com qualquer oferta de dias sem nuvens carregadas no céu. No último sábado pedalamos até Scheveningen, o bairro da praia principal de Haia, que também abriga um parque enorme cheio de dunas. Queríamos buscar um pouco de vitamina D naquela tarde ensolarada. Não vou afirmar que foi o suficiente, pois estava frio demais para perdermos a noção do tempo caminhando. Mas foi um passeio gostoso, deu até para tirar o pó das nossas câmeras analógicas e nos encheu de esperança por dias menos chuvosos. Sonhamos pouco, pois a semana já começou virada no jiraia com pancadas de chuva.

(Eu disse, o dia estava lindo)

Do último Corona Diaries, datado do início de julho, pra cá, muita água rolou. Os holandeses caíram nos encantos do verão e fecharam os olhos para o vírus. Como se o Covid tivesse tirado férias. O número de infectados voltou a subir em meados de setembro e o governo precisou fazer alguma coisa. Tudo foi fechando aos poucos. No momento os restaurantes e bares estão fechados e temos um punhado de restrições a seguir como em outros tantos lugares do globo. Nós encaixamos uma mudança de apartamento neste segundo lockdown, e cá estamos vivendo as dores e delícias de buscar e comprar móveis e ver nossa morada atual ser tomada por caixas. Entre atos Nico e eu saímos no meio da tarde para andar um pouquinho quando a chuva da trégua. Durante uma de nossas caminhadas descobrimos a Free Beer Co., uma portinha entre a Prinsestraat e a Molenstraat onde dois canadenses bons de papo vendem cervejas.

Eles propõem um serviço de assinatura muito bem quisto sobretudo por quem aumentou o consumo de bebidas alcólicas nesta pandemia. Você paga 10 euros para entrar no clube do garrafão de 2 litros e 7 euros para o clube de 1 litro. Feito isso, você pode repor o conteúdo pagando 10 euros por litro. A ideia é motivar os assinantes a descobrirem diferentes tipos de cerveja a cada semana. Eles possuem três torneiras que são trocadas religiosamente uma vez por semana. Um valor honesto para se embebedar com essa curadoria maravilhosa de brejas. Para completar a dupla é ótima de vendas, então eles sempre acabam nos empurrando uma ou outra cerveja extra – pois sim, eles possuem uma seleção à parte de cervejas em lata e garrafa. A parte boa é que eles já eram uma loja “à prova de corona” – com o perdão do trocadilho barato com a marca de cerveja – visto que o local é fechado e o único contato que os clientes possuem é pelo balcão. No fundo da minha nostalgia ele me lembrou o The little coffee shop, lá no bairro de Pinheiros, em São Paulo, que também funciona neste esquema de ter apenas um balcão para servir quem está passando pela esquina da Rua Lisboa com a Artur de Azevedo. Deu saudade de quando trabalhava na mesma quadra do café e podia compartilhar um espresso ou um coado com as minhas amigas de trabalho depois do almoço. A pandemia e o desemprego mexem tanto com o meu emocional que já me peguei chorando ao me lembrar de quanta coisa legal vivi durante meus últimos meses empregada no Brasil.

Agora me encontro aqui, ainda transbordando desesperança, e fechando uma mala com minhas roupas de verão. É curioso esse processo de fechar ciclos e a forma como reagimos a ele. Cheguei em Haia no segundo dia de Dezembro de 2019 e agora, um ano depois, faço as malas outra vez rumo a um novo capítulo da minha vida na Holanda. Por vezes pergunto se minha existência por aqui começou de verdade ou se segue no limbo. Quando se dá o processo de criar raízes em um lugar? A partir de quando sentimos segurança para chamar um lugar de lar? A pandemia colocou todos os processo clássicos de adaptação em suspenso. Vivo um paradoxo constante onde oscilo entre a sensação de que acumulei diversas vivências ao longo do ano e a impressão de que nada aconteceu. Depois de passar 2020 flutuando em tantos nadas, resolvi tirar um tempo para transformar minha jornada de auto-conhecimento em um projeto. O tal emprego de project manager não aparece, então tenho visto o que posso fazer para dar criar este trabalho em um nível pessoal.

Visto que preciso esvaziar os armários e gavetas para encaixotar o que levarei para a casa nova, resolvi fazer uma triagem e rever alguns projetos pessoais. Poderia ter feito isso antes, eu sei, mas minha ambição esqueceu de fazer o plano de emergência para um ano inteiro sem emprego. Mas bem como diz o poeta, o tarde demais não existe. E se teve algo que a pandemia fez por mim foi me empurrar para dentro e me ajudar a encontrar pistas valiosas sobre o caminho para sair mais forte depois de um longo período de embate pessoal. Não sei você, mas eu estou bem curiosa para conhecer os caminhos que 2021 pretende me apresentar.

Como não ser atropelada a cada esquina

ou ‘os cinco maiores clichês da Holanda’

Den Haag (a cidade onde moro) em uma manhã de inverno

Sou uma pessoa que carece de concentração nas primeiras horas do dia. Até consigo fazer um milhão de coisas, mas é tudo executado no modo automático, não penso, tampouco raciocino ou produzo efeito sobre minhas atividades. Isso tem um total zero de impacto na vida de uma pessoa desempregada e ainda em vida no meio de uma pandemia. Estou presa em casa, o pior que pode acontecer é deixar algo cair no chão ou esquecer a roupa recém-lavada dentro da máquina por algumas horas. Porém Outubro chegou, o mundo segue em desordem e não vou mais viajar, tampouco sair do país pelos próximos três meses, achei por bem me inscrever em uma academia pois ando insatisfeita com a minha forma física. Nessa vida me falta cada vez mais estímulo, sabe como é, essa vontade de existir que anda definhando mais e mais. A academia pareceu uma boa solução pra colocar meu corpo em movimento e não deprimir com a chegada do inverno. Se não sair de casa nas tais primeiras horas do dia sei que vou procrastinar até o fim dos tempos e terminar jogando a mensalidade no lixo. Enfim. Foi numa dessas que, munida de toda desconcentração do mundo, coloquei um podcast pra tocar e parti rumo aos meus 15 minutos de caminhada até a tal da academia, para quase morrer atropelada durante 5 segundos de distração. Porque na Holanda você pode estar parado, olhar para sua esquerda, direita, suas costas, o céu e adiante, e ainda assim ser atropelado por uma bicicleta, um carro, um ônibus, ou até mesmo por um outro transeunte.

Será que as regras de trânsito daqui são diferentes? Ou só eu que sou tonta demais e não deveria me distrair por um segundo sequer? Fiquei às voltas com esta pergunta em mente, no dia em que tiver um salário vou investir em um curso de atualização das condutas de trânsito para ver se me sinto um pouco mais segura.

Foi durante uma dessas reflexões que veio a vontade de falar sobre os clichês da Holanda pela minha perspectiva. Sem querer cair naquele “clichês que são reais”, mas já caindo, resolvi listar alguns dos lugares comuns que tanto me anunciaram e que foram se confirmando com a passagem dos primeiros meses aqui. Frisando que essas impressões são de uma pessoa que passou a vida toda no Brasil e que, depois de dois anos morando na França, certamente vai fazer algumas comparações inspiradas no que vivi no país das baguettes oui oui oui.

Sim, você pode ser atropelado a qualquer momento.

Passei a vida achando que a calçada era um lugar relativamente seguro para quem precisa parar. Que seja para amarrar o cadarço solto, checar o Google Maps ou mudar de playlist, se você quer parar no meio de uma caminhada, provavelmente vai fazê-lo na calçada. Só que a Holanda é freestyle e o céu é o limite. A cena que descrevi no início deste texto foi real, e o CAMINHÃO que quase me atropelou era de lixo. Porque sim, todo tipo de veículo pode subir na calçada quando você menos espera, todo cuidado é pouco. É difícil me ver saindo de casa sem fones de ouvido, mas desde a mudança pra Holanda foi preciso baixar o volume para ouvir eventuais invasões de calçada. Já teve dia em que fui surpreendida por três caminhões desses gigantes de mudança num curto trajeto de quinze minutos. A rua onde moro é muito estreita, só tem espaço para um carro passar por vez. então quando precisamos descarregar as compras do mercado…subimos gentilmente na calçada. Porque senão os outros carros não conseguem passar. Será que é isso? As limitações físicas das cidades impulsionaram os holandeses a subir nas calçadas quando fosse preciso, sem checar se há um pedestre ou ciclista no caminho? Me parece que achei uma das respostas. Caminhar pelas ruas perdeu todo o tom de flâneur urbana que um dia tive na França, pois nunca é tranquilo. Confesso que vez ou outra me pego contando a quantidade de vezes em que fui surpreendida por carros ou caminhões nas calçadas durante um trajeto.

Tem bicicleta pra mais de metro mesmo

Ainda no tópico atropelamentos, temos aqui a maior provocadora de acidentes de toda natureza: a bicicleta. Ela merece demais o seu lugar nos cartões postais do país. Já que a circulação de carros é um tanto dificultosa, é natural que tenham considerado mais fácil se deslocar de bicicleta. Em termos de manutenção sai muito mais em conta. Até porque ter um carro custa bem caro por aqui. E não há tempo ruim para os holandeses. Eles passam boa parte da vida deles debaixo de chuva, então nada pode abalá-los. Faça chuva ou faça sol, a circulação de bicicletas é sempre intensa. E você vai ver de um tudo. Tem gente que carrega três crianças num carrinho anexo, tem gente que fala ao telefone enquanto carrega a sacola de compras do mercado (PEDALANDO, você não leu errado), tem gente que carrega um móvel desmontado. Aqui é fácil encontrar estacionamentos exclusivos para bicicletas! E você pode ir de uma cidade para a outra pedalando pois existe faixa de pedestre em tudo que é canto mesmo. A Holanda leva essa história de mobilidade urbana muito a sério e eu adoro.

Um sábado ensolarado em Leiden

Eles amam fritura. E pão com granulado de chocolate

Poderia listar inúmeras coisas que adoro por aqui, mas o intuito deste post é falar sobre as peculiaridades, aquelas coisas que me surpreenderam ou me chamaram atenção de alguma forma. Nem tudo são flores, e a Holanda é tipo os Estados Unidos da Europa (roubei esta frase do meu vizinho argentino, obrigada, Alejandro). Para começar, todo mundo fala um inglês tão impecável que por vezes fico confusa quando vejo as placas em holandês. A mentalidade e a cultura americana possuem forte influência, e isso se reflete bastante na alimentação. Holandeses valorizam a pausa para o almoço, mas não gostam de desperdiçar o precioso tempo que possuem. É conhecido que muitos deles comem só um sanduíche ou um pão com pasta de amendoim ao meio-dia. Eles deixam para preparar algo quentinho à noite, na hora do jantar. Bom, eles jantam cedo, por volta das 18h – o que para mim é reflexo da fome provocada pelo almoço simples. É um lance cultural, não quero ser ofensiva com os holandeses, mas vim de um país onde temos o costume de comer bem no almoço. E eu gosto de comer algo que me dê sustança para dar conta do resto do dia. Hábito que levei comigo pra França (só foi preciso reduzir a quantidade).

Mas o lance é: como bons americanos, os holandeses adoram uma fritura. Tudo que eles puderem tacar no óleo, vão tacar. E isso é mágico pra quem curte uma junkie food vez ou outra, não nego. Se alguém me pergunta o que há de comida típica na Holanda, respondo, sem pestanejar, Bitterballen. É basicamente uma bolinha de carne (quer dizer, eu acho que tem carne. Nunca pergunte a um local do que é feito, é um grande mistério, uma lenda do país) frita, servida com mostarda em porções de 6 ou 8 bolinhas. Estrelinha do happy hour e do apéro (aquela saudade de um bom apéro francês). Em qualquer bar e restaurante você pode encontrar uma boa variedade de salgadinhos fritos para petiscar, por sinal. Estamos colados na Bélgica, e a tradição de consumir boas batatas fritas foi apreciada e adotada pelos holandeses.

Agora um lance que ainda não entendi muito bem e tenho dificuldades em aceitar é o Hagelslag. Você entende porquê tenho apanhado tanto para aprender holandês? Este é o lindo nome usado para designar granulado. Os mercados possuem uma prateleira inteira só com variedades de hagelslag. De chocolate ao leite, chocolate branco, colorido, com grãos mais grossos, raspas de chocolate… tirei uma foto para ilustrar. Daí eles pegam uma fatia de pão de fôrma, passam manteiga (pra dar liga), jogam o granulado por cima e mandam pra dentro. Por isso as crianças daqui são tão felizes. É o açúcar no sangue.

Uma prateleira inteira de Hagelslag!

A cerveja no cinema é real

Curiosidade inútil do dia: Quentin Tarantino escreveu boa parte do roteiro de Pulp Fiction em Amsterdam. Ele fez questão de deixar singelas homenagens aos Países Baixos no texto. Durante um dos diálogos entre Vincent (John Travolta) e Jules (Samuel L Jackson), Vincent comenta que em Amsterdam você pode pedir uma cerveja no cinema. E que ela é servida na garrafa mesmo, como em um bar. O barulho da garrafa de Grolsch (pois nem só de Heineken vive este país) abrindo em sequência na sala de cinema é um clássico e foi uma das coisas que mais me marcou quando chegou aqui. Sou rata de cinema, como dá para perceber em uma breve folheada neste blog. No Brasil só as grandes redes servem pipoca, guloseimas e refrigerantes. O mesmo vale pra França, mas muitos dos cinemas ‘de rua’ não servem nenhum tipo de comida. Na Holanda vale tudo em todos os cinemas. Se você estiver tomando um vinho no bar do cinema e sua sessão for começar em 5 minutos, você pode ir ver o seu filme com a tacinha em mãos, sem problemas. Nas minhas muitas idas ao cinema, sobretudo em tempos pré-Covid, nunca vi ninguém derrubar ou quebrar um copo. Galera treinada.

Você pode encontrar sua encomenda na casa do vizinho

Assim como a bike, o serviço dos correios também é freestyle. Foi difícil entender a dinâmica deles quando cheguei por aqui. Assim como na França (e imagino que em muitos países da Europa), você tem uma caixinha de correio na entrada do seu prédio ou na frente da sua casa. O jeito mais fácil de acertar a caixa de correio, caso o número do apartamento não esteja claro, é pelo nome. Quando você faz uma encomenda, caso ela caiba na caixa de correio, eles nem interfonam. Mas se for algo grande ou que demanda assinatura, eles tocam a campainha. Se ninguém estiver em casa – e juro que um dia esse conceito de casa vazia existiu – eles deixam na casa do primeiro vizinho que responder. Já aconteceu de receber encomendas pra gente que nunca vi na vida, já precisei bater na porta de gente que nunca vi na vida para retirar minha encomenda. Altas emoções. No Brasil isso instauraria o caos absoluto, mas aqui funciona bem.

Peço desculpas a você que leu este texto até o fim na expectativa de descobrir como não morrer atropelado, mas a verdade é que eu ainda não descobri. Se alguém tiver um insight, aceito de bom grado. Caso encontre respostas, volto aqui para contar minha experiência. Na real foi só uma desculpa para falar sobre a Holanda e as impressões que tive desde a minha chegada por aqui. Escrever sobre minhas vivências foi ótima, nenhum texto foi escrito tão rápido quanto este nos últimos dois meses. Revisitar esses clichês ajuda a gente a aproveitar melhorar a experiência de um país que não é o teu de origem. E até a rever certos costumes com outros olhos.

Encerro aqui, pois agora é hora de ir fazer minha contagem (quase) diária de veículos que sobem na calçada.

On the rocks, de Sofia Coppola

Envelhecer dificultou o processo de remontar minhas memórias com precisão. Me situar na passagem do tempo passou a ser um tanto desafiador, sobretudo agora, estando bem próxima dos 30. Apesar das imprecisões, tenho lembranças de ter adentrado em uma das fases mais chatas críticas da minha adolescência na época em que assisti Lost in Translation. Foi meu primeiro filme de Sofia Coppola e, enquanto adolescente deslumbrada que descobre a existência do cinema para além dos filmes da Disney e das comédias pastelão, foi um marco significativo. Fiquei encantada com o jeito de filmar de Sofia, os enquadramentos, a delicadeza da amizade estabelecida pelos protagonistas, o quão mágico o Japão me pareceu, o quanto a diretora exprimia sem precisar dizer muito. Aquilo me fascinou e logo fui atrás de The Virgin Suicides e Marie Antoinette, que havia estreado há pouco. Na minha perspectiva jovem dava para sentir o quanto ela se colocava implicitamente no enredo. Transformou-se em uma grande referência para mim. Achava potente esse jeito de deixar escapar tanto sobre si ao contar uma história alheia. Hoje, quase quinze anos mais tarde, fui assistir a nova produção da Sofia, On the rocks, e saí do cinema com uma impressão diferente. Ficou uma sensação de pressa, algo tão atípico para quem se criou na contemplação Coppoliana (sim, eu inventei este termo agora).

A trama é simples: Laura (Rashida Jones) vive em Nova Iorque com o marido, Dean (Marlon Wayans), e as duas filhas pequenas. Ela é escritora e trabalha de casa, enquanto ele mantém uma agenda cheia trabalhando para uma start-up em ascensão. Laura começa a suspeitar que ele tem um caso com uma de suas colegas de trabalho e essa desconfiança aflora no momento em que seu pai – descrito inclusive pela diretora como um playboy, Felix (Bill Murray), reaparece depois de uma temporada ausente.

Aviso aos navegantes – embora não discorra sobre o desfecho, devo comentar detalhes do enredo que podem ser entendidos como spoilers.

Diferente de tudo realizado por Sofia até agora, On the rocks é um filme mais “ágil”, sem aquelas longas sequências contemplativas que são sua marca registrada. Não há momentos icônicos e memoráveis, nada que te marque e te faça repensar por horas depois. Não é a intenção. Para mim ele foi como um desses drinks leves que a gente pode apreciar com moderação e que nos deixa meio alegrinha quando acaba. É descompromissado, feito para você se desconectar por alguns momentos da realidade e rir um pouco dos absurdos ditos por Felix e para eventualmente se identificar com as nóias de Laura.

Depois de apontar defeitos e dizer que não há nada de memorável neste filme, você deve estar perguntando se eu gostei mesmo (ou porquê raios resolvi escrever sobre). Vou te poupar de enrolações desnecessárias. A resposta é sim. Em momentos de tanto caos e incertitude, a verdade é que eu precisava de um filme assim. Os desgraçamentos mentais que a Sofia me propôs no passado foram violentos, então confesso que gostei da possibilidade de ser poupada e ter um breve afago vindo dela.

Em contraste com a carreira bem sucedida de Dean, Laura está no meio de um bloqueio criativo. Enquanto pessoa que escreve posso afirmar o quanto este bloqueio alimenta toda sorte de paranoia. Incapaz de sentar a bunda na cadeira e escrever uma mínima frase que faça sentido, começo a pensar nos problemas que tenho enfrentado e em todas as coisas que preciso resolver ainda esta semana. Sinto a concentração flutuar para bem longe, potencializando meu jeito desastrado de lidar com a vida. Essa sensação é muito bem retratada por Rashida Jones. Diferente de mim, ela vive esse conflito enquanto cuida das duas filhas pequenas. A estafa mental com o cuidado com as meninas recebe certos alívios cômicos em especial nas sequências onde sua ‘amiga’ Vanessa (Jenny Slate) conta suas aventuras nos corredores da escola. Ou em uma das sequências em que Laura encontra seu pai ensinando as meninas a blefar. Neste contexto é fácil imaginar como Laura alimenta desconfianças sobre a fidelidade do marido. Seu pai, com tempo livre de sobra, embarca nesta suspeita e os dois passam a vigiar as ações de Dean.

Adoro Murray no papel de tiozão, cheio de tiradas ridículas e baratas e colocações machistas daquelas que nos fazem virar os olhos de tanta vergonha alheia. Cá entre nós, em diversos momentos me fez pensar no meu pai e em todas suas colocações inapropriadas. Embora seja algo que dê nos nossos nervos na vida real, no filme soa engraçado e traz um certo alívio cômico, graças à química e à leveza da interação dele com Jones. É como se eles de fato fossem pai e filha. Esta é, por sinal, a proposta do filme: construir uma narrativa sobre a paternidade. Essa intenção é anunciada logo no início, quando ouvimos uma voz masculina dizer, no escuro “and remember: don’t give your heart to any boys. You’re mine, until you get married. Then you’re still mine”. É sobre essa proteção paternal que pode até ser doentia, mas aqui é encarada com leveza e em tom de comédia. Sofia explora um pouquinho sobre como essa relação evolui ao longo dos anos e o que podemos fazer para manter um laço afetivo de forma saudável.

Existe muito da Sofia das antigas por aqui. Temos mulheres solitárias em seus conflitos internos, uma Nova Iorque cinza e melancólica que contrasta com o tom de comédia do filme e personagens que levamos conosco por um tempo após o fim da projeção. Embora o foco seja a relação entre pai e filha, existe uma vibe meio Lost in Translation, e este foi um dos fatos que me fez ter tanto afeto pelo filme. Me deixou nostálgica da filmografia de Sofia e com saudade do meu pai, que graças a este micróbio desgraçado já não vejo há mais de um ano.

É isso. Não há nenhuma reflexão, tampouco uma lição de moral. Isso pode soar frustrante para quem gosta da Sofia das antigas, mas minha dica é não se levar tão a sério. Ela segue presente em cada frame, porém com certo distanciamento e com uma nova roupagem. Como se anunciasse que agora tem maturidade cinematográfica suficiente pra fazer o que me entender, inclusive um trabalho que destoa de toda sua filmografia. A realidade anda difícil demais de digerir, nós merecemos um pouco de alívio cômico para apertar o botão off da realidade durante uma hora e meia de projeção.

Um brinde aos meus três anos de Europa (ou quase isso)

Arte por Isabelle

Sabe aquela sequência clichê das séries onde a protagonista acorda cheia de energia, toma um banho super empolgada, se arruma, veste sua roupa favorita, e justo no momento em que sai de casa uma pomba passa e caga na cabeça dela? É uma metáfora perfeita da mudança para o exterior. Quando chegou a minha vez, me senti a mestre do planejamento depois de organizar cada detalhe e partir com o coração aberto à essas novas oportunidades oferecidas pela vida em outro país. Mas ele me recepcionou defecando na minha cara. Como boa mulher brasileira forte e que não se abala com pouca coisa, eu primeiro xinguei um sonoro desgraça, limpei a sujeira e comecei outra vez. Acontece que fui pra França, e a população de pombas é enorme e forte por lá. Tomei muita bosta na testa. Comecei a me irritar com esta ação repetitiva e levei um bom tempo até aprender a contorná-la e a não me deixar afetar. Quando me senti com o mínimo de controle da situação, certa de que estava pronta a enfrentar situações semelhantes em qualquer lugar do mundo, juntei minhas malas e fui arranjar um jeito de chamar a Holanda de casa.

E aqui quem caga na minha cabeça são as gaivotas.

É um lugar comum entre muitos brasileiros que partem ao estrangeiro: nós gostamos de fazer um texto comemorativo para celebrar mais um ano de sobrevivência longe do Brasil. Chamo de ‘sobrevivência’ pois é vitorioso e precisamos nos parabenizar por nos vermos cada vez mais fortes longe de tudo que nos é tão familiar. Faço parte deste grupo e amo o exercício de fazer uma espécie de retrospectiva do ano que passou. Reviver as memórias é como assistir a um filme e me faz bem rever as cenas dos bons momentos e lembrar que as etapas difíceis passaram e superei todas elas. É algo que gosto de fazer também a cada aniversário, mas a perspectiva aqui é um tanto diferente. Me atenho a como atravessei cada etapa do existir enquanto estrangeira em um país que não é o meu de origem. Segui na França ao me despedir de Montbéliard e ir morar em Annecy, e com isso comemorei dois anos no País dos Croissants no dia 29 de agosto de 2019. Agora preciso ajustar minha narrativa e ainda não decidi se comemorarei meu aniversário de X Anos na Europa ou X Anos Que Deixei o Brasil. Aceito sugestões. Cheguei na Holanda em dezembro do ano passado, e com isso meu terceiro ano fora do Brasil foi celebrado em território laranja. O mesmo 29 de agosto, um mês atrás, veio sem nenhuma inspiração para fazer minha crônica de mais uma ano morando no estrangeiro.

Queria um registro de qualquer forma pois é difícil deixar algo de tamanha importância para mim passar em branco. Tentei pensar em diversas formas de começar este texto e me peguei travada, sem saber qual caminho percorrer. Ainda é difícil falar sobre assuntos tão delicados, dar nome aos incômodos e assumir coisas das quais não me orgulho. Tinha muito a contar ao completar dois anos de França, tenho pouco a dizer sobre meu quase um ano de Holanda. Pode-se dizer que não houve tempo para viver a realidade deste novo país que só sei chamar de lar de um jeito meio torto.

Antes de termos a imposição do isolamento social em um contexto de pandemia, ainda nos meus primeiros seis meses de França entre 2017 e 2018, senti o quanto manter contato à distância é complicado, seja porque as pessoas gerenciam mal a ausência física, seja pelo fuso horário que nem sempre ajuda. Foi preciso velar algumas amizades. E embora tenha doído tentei me colocar no lugar destas pessoas algumas vezes. Estou longe de me encaixar nisto que as pessoas definem como mulherão da porra, não sou um exemplo a ser seguido. Levo uma vida simples e sou ordinária até demais. Mas sei também o quanto é fácil associar o “morar no exterior” a uma vida perfeita. E algumas pessoas sentem raiva ao ver as outras indo viver essa tal vida perfeita no estrangeiro. Porque sair do Brasil parece uma solução mágica. Ainda mais se você vai para um país de primeiro mundo. É mais seguro, de fato. Mas existe essa ideia de que tudo é mais cômodo nestes países: a comida é mais barata, a cultura é acessível a todos, o transporte público funciona. A lista é longa. Para muita gente essas mil vantagens são suficientes para silenciar o fato de que você se muda sem conhecer ninguém, sem saber muito bem as regras do local e longe da sua família. Em tempos de superexposição nas redes sociais é ainda mais fácil cair nesta ilusão ao ver um feed cheio de fotos de lugares bonitos. Sustentar essa narrativa é tão cômodo quanto a reação de muitos estrangeiros quando me queixava de saudade: se estou tão infeliz, porque não volto para o meu país?

Apesar de toda carga negativa e de inúmeras cagações de regra, há luz no fim do túnel. Tanto na França quanto na Holanda fui bem amparada emocionalmente. Reforcei minhas ligações com muitas pessoas (à distância!), tive e tenho apoio dos meus pais e de amigos mais próximos. Sou grata por ter uma rede de apoio tão carinhosa e sinto uma falta absurda de tê-los todos fisicamente por perto. Neste sentido tenho tanta sorte que agora também posso contar com um parceiro que me dá suporte emocional e financeiro, um cara maravilhoso que está pronto a me ajudar independente do teor das minhas crises. Este deve ter sido um dos pontos altos do ano que passou. Ter o apoio dessas pessoas foi fundamental para não largar mão de tudo e correr de volta para o Brasil.

Posso afirmar que em termos de receptividade a Holanda é mais acolhedora que a França. Pode ser uma reação ao fato deles andarem de bicicleta o tempo inteiro, o que permite manter a produção de serotonina sempre ativa, mas eles parecem mais felizes e dispostos. É tudo bem organizado e as pessoas me parecem ter um bom equilíbrio entre trabalho e vida pessoal. Mas vivo de suposições desde a minha chegada. Cheguei no mês mais morto do ano, no auê das preparações para Natal e Ano Novo, um período onde ninguém está muito preocupado com trabalho (tampouco em contratar gente nova), faz um frio do caramba e chove muito e ninguém quer ficar na rua. As pessoas contam os segundos para tirar férias e curtir um jantar gostoso entre família. Já sabia que minha integração só começaria a acontecer em janeiro. Assim foi. Em um primeiro momento acabei convivendo com colegas de trabalho do meu parceiro e, em paralelo, me inscrevi no Meetup e comecei a procurar eventos relacionados aos temas que eu gosto. Porque eu estava rodeada de pessoas interessantes, mas queria sair um pouco do núcleo deles, que é bem internacional, e conhecer pessoas que chegaram aqui por outros meios e motivos. Existe também o detalhe de que cheguei sem saber uma palavra sequer de holandês (eu não sabia nem pronunciar o nome da cidade onde ia morar), e meu inglês, que ficou bem adormecido ao longo de dois anos na França, estava bem enferrujado. Colocar na minha cabeça que uma língua germânica não vai achar lugar fácil no meu cérebro tão habituado a línguas latinas é outro desafio, pois nem sempre consigo aceitar a lentidão do processo. Tudo isso para dizer que tardei a sentir o impacto tomando conta, porém uns tantos pequenos elementos viraram pedra no meu sapato e ficou cada vez mais difícil caminhar com alguma destreza. Nos meus primeiros meses na Holanda não imaginei que seria tão difícil conseguir um trabalho.

Antes de sair do Brasil tinha dificuldades em entender o que levava meus amigos brasileiros a aceitarem trabalhos que não tinham nada a ver com eles no exterior. Ou porque eles preferiam manter um trabalho no Brasil enquanto moravam em outro país, mesmo sabendo que a conversão das moedas não compensaria tanto assim. Na minha cabeça a conta não fechava, me perguntava se valeria mesmo a pena abrir mão de ter uma carreira ascendente no Brasil só pelo gosto de ter um salário mínimo em euros. Naquela época eu era total sem percepção da realidade e alimentei uma ilusão na qual eu conseguiria trilhar um caminho bacana e construir uma carreira brilhante em território estrangeiro, fosse na área de comunicação ou como gerente de projetos digitais.

Você se lembra dos pombos? Como mencionei acima, eles se transformaram em gaivota e fizeram questão de cagar em todas as minhas ilusões e expectativas. O tal emprego nunca veio, tampouco as reações positivas ao meu CV. Até rolaram algumas poucas entrevistas, que inclusive renderiam um post à parte dada a surrealidade dos fatos, mas pouco avançou ao longo destes últimos 10 (!!) meses. É muito frustrante estar sem ocupação em um país que você conhece mal, sentindo teu inglês enferrujado e apanhando para pronunciar decentemente algumas cinco frases em holandês. A exaustão psicológica se transformou em algo físico e a cada dia desperto mais nervosa e mais desesperada. Porque sou uma pessoa sem habilidade alguma para ter sossego. Queria usar este tempo livre para ver umas séries e fazer uns cursos online de graça. Mas me pego tomada de culpa em estar fazendo algo não relacionado a mandar um CV ou escrever uma carta de motivação.

Senti muita frustração em diversos momentos deste terceiro ano de Europa. Como se os dois anos anteriores tivessem sido desperdiçados com um investimento que não me ajudou em nada no presente. Ainda tenho muito a aprender sobre ser gentil comigo mesma ao longo deste processo de adaptação. Quando a angústia me dói mais que de costume, me esforço para respeitar também o momento que estamos vivendo. Todo mundo está em busca de um pouco de serenidade e de meios de se reinventar e existir no contexto de uma pandemia. Comigo não seria diferente.

É fato, ando capengando e ainda não descobri um método eficaz para fugir das gaivotas. Porém este terceiro ano me fez enxergar o quanto sou forte e fui longe sim. Interrompi minha trajetória profissional por um período, é verdade. Mas aprendi muito e me vi crescer mais resistente em lugares que nunca vão me acolher como o meu país de origem, sem ter ideia de quando poderei ver minha família e amigos mais próximos outra vez e abraçando um caminho cada vez mais incerto. Carrego esse sentimento com orgulho suficiente para balancear a perspectiva pessimista e não me deixar abalar pelos obstáculos. O que é meu tá guardado, como costumam dizer sempre lá na minha terra.

Pessoas horríveis, o livro e a série

É difícil passar pela leitura de Pessoas Normais, de Sally Rooney, sem sentir muito. Sentimentos estes entendidos como negativos: raiva, indignação, frustração. Pode ser que você se identifique com os personagens, mas o risco de passar nervoso é o mesmo. Vi muitos amigos comentando sobre a obra, sobretudo pessoas com preferências literárias semelhantes às minhas. Mas o que me motivou a comprar e ler foi a capa. Fiquei intrigada com a associação que fiz entre o título e aquelas duas pessoas espremidas dentro de uma lata de sardinha. Palmas à ilustradora, que com uma imagem tão simples anunciou a essência do enredo. Rooney conta a história de Marianne e Connell, dois jovens que estudam no mesmo colégio no interior da Irlanda. Ela parte de um clichê bem conhecido – a moça é uma nerd sem amigos, ele faz parte do time de futebol e é bem popular. A história deles acaba se cruzando pois para além da escola, a mãe de Connell trabalha como faxineira na casa de Marianne.

Eles se envolvem, mas ninguém pode saber pois a popularidade de Connell seria ameaçada. Marianne se silencia, assumindo a postura do “isto não está me fazendo mal, não tem problema algum”. Um lugar comum entre os millennials – muita disposição para pegação, zero desenvoltura para assumir sentimentos. Existe essa ideia de ‘conforto’ no não dizer. Se você não manifesta verbalmente como se sente, é como se os sentimentos não existissem.

Como em todo bom enredo, ele é composto por diversas camadas e a primeira impressão é um tanto superficial. Como se fosse só mais uma história corriqueira de romance frustrado que se limitasse a discutir conflitos de comunicação. Conforme você adentra nas nuances da história, mais ela passa a levantar questionamentos – e sinto que a série foi muito benéfica neste aspecto. Todos os pontos que me pareceram meio soltos na obra foram bem explorados na adaptação televisiva.

Começo por Marianne. Ela tem uma personalidade forte, é firme em seus discursos impessoais. Uma pessoa que fala com propriedade sobre qualquer assunto que não seja relacionado a como ela se sente enquanto ser humano. Isso explica um pouco da minha impressão inicial, quando a vi como alguém introspectiva e só. Conforme a história avança as cicatrizes dela começam a se mostrar. Marianne nunca foi amparada por ninguém. Embora Rooney não dê muitos detalhes sobre o pai dela, sabemos que ele não é flor que se cheire. Tanto no livro quanto na série ele não dá o ar da graça em nenhum momento, mas fica implícito que a relação dele com a esposa, então viúva (o pai de Marianne faleceu quando ela tinha 13 anos) não era das melhores. Isso reflete, em certa medida, na forma como ela se ocupa dos filhos. Marianne é negligenciada a ponto de não ser defendida durante uma das discussões com o irmão, Alan. Ele tem um comportamento violento, tanto que acaba agredindo a irmã fisicamente em uma das sequências.

Marianne cresceu entre dois homens insolentes, então digamos que suas referências masculinas não eram das melhores. Nós vemos como ela preenche esse vazio com namorados lamentáveis e abusivos. O amor próprio mandou abraços para nossa protagonista. O fato de nunca ter sido protegida acaba refletindo também nas amizades. Uma vez que ela parte para Dublin, sua popularidade aumenta. Ela passa a frequentar pessoas com o mesmo padrão financeiro de sua família e no mesmo nível intelectual dela. Tudo aquilo que fazia dela a esquisita da escola veio a ser uma qualidade em seus anos universitários. Rise and shine, Marianne. Salvo que tudo que nos dói e não é tratado acaba ressurgindo uma hora ou outra. Sua vida é toda preenchida por superficialidades que escondem os problemas.

Corta para Connell. Enquanto adolescente, a popularidade na escola é tudo que ele tem. Ele não quer colocar essa fama em risco, pelo contrário. Quer aproveitar até onde pode, a ponto de silenciar seus desejos. Ele vive com a mãe, Lorraine, uma das melhores personagens desta história, por sinal. Eles fazem parte de uma classe menos abastada, ela é mãe solteira e trabalha fazendo faxina. Connell tem uma boa relação com ela, mas ainda é muito imaturo. E parece convicto de que sua popularidade o acompanhará para onde for. Percebemos que ele não é desrespeitoso com Marianne em nenhum momento, mas tampouco assume alguma responsabilidade. E é aí que as coisas se complicam. Ele não sabe mensurar o impacto de sua imaturidade até debandar para a capital e se ver tão perdido quanto a Marianne do colégio. Ele sente o gosto amargo de não conseguir constituir laços, de não conseguir se impor nesta sociedade cheia de pessoas ricas e ditas inteligentes demais. Acompanhar o processo dele ao tentar se impor e ter uma voz entre pessoas que nunca fizeram parte do seu círculo social é doloroso. Ele encontra meios de ‘existir’ neste contexto, e, embora não se sinta 100% confortável, passa a encarar a realidade com um pouco de leveza. Sobretudo depois do mochilão que ele faz e ao começar seu namoro com Helen.

Se Marianne e Connell não se tornam um casal, não é puramente por falta de comunicação, mas também pelo conflito social. Connell passa boa parte do enredo preso, sente culpa ao se ver com alguém que não possui as mesmas condições. Isso não é verbalizado em nenhum momento, mas acaba saltando nas entrelinhas. Embora pareça tolo se importar com um fator tão ‘banal’, acaba sendo uma forma de bloqueio. Esse impacto é evidenciado pelo encontro com Marianne em Dublin, que confirma a ideia construída por ele de que eles não fazem parte “do mesmo mundo”. Ela é o único lar que ele tem por ali, visto que eles carregam uma conexão longíqua e ao menos ela o conhece independentemente de qualquer estigma social. Ele não consegue abrir mão de sua vida anterior e culpabiliza ainda mais com a notícia da morte de um de seus amigos da escola mais para o fim do livro, que o encaminha para uma depressão e o faz trabalhar a aceitação de que talvez as coisas não estejam lá tão bem assim. E que por vezes é necessário parar e repensar a nossa lógica de vida para poder seguir em frente.

Marianne, por sua vez, tem sua revelação em meio a uma cena de abuso psicológico por parte do seu namorado que ela arranja durante uma temporada na Suécia. Ela tem uma iluminação e entende que não precisa se submeter a humilhação para ter uma migalha de amor, e neste momento ela passa a se questionar sobre como foi parar neste lugar. É um primeiro respiro para a personagem, que passa todo o romance emendando um namorado merda no outro. Mas ela ainda tem muito chão pela frente (quem nunca) e isto é posto à prova quando ela empreende uma nova etapa com Connell. Quando tudo parece se encaminhar para um relacionamento saudável entre ambos, quando eles enfim conseguem conversar como pessoas normais que assumem suas inseguranças, um deles precisa partir.

Embora tenha levantado muitos aspectos positivos, o livro me deixou um tanto decepcionada. Boa parte dos pontos que me deixaram reflexiva só vieram depois de assistir a série. Custei a me implicar na narrativa, que me pareceu um tanto vaga. Só conseguia sentir raiva, vontade de dar um chacoalhão nesse povo e mandar todo mundo pra terapia. Um lado meu dizia que este sim poderia ser um livro que dá voz a nossa geração, esse bando de gente que sofre pra dar nome ao que sente. É um retrato perfeito da agonia relacional dos millennials. Nesse sentido Rooney é maravilhosa, mas faltou alguma coisa que me cativasse de verdade. Essa ‘falta’ foi 100% preenchida pela série, que tapou todos os buracos que a obra havia deixado para mim. As atuações são incríveis, Daisy Edgar-Jones e Paul Mescal possuem uma química surreal e constroem uma Marianne e um Connell quase palpáveis. Tudo que faltou em emoção no livro, transbordou na série.

Independente de ter gostado mais da série que do livro, Pessoas Normais me marcou e considero como uma obra muito significativa e sintomática de nossos tempos. Um retrato delicado de como podemos soar banais na superfície e o quanto isso se afirma em uma geração tão dependente da imagem que passam nas redes sociais. Mas que no fundo somos todos seres complexos e cheios de questões que temos dificuldade em abordar e exteriorizar. Se você ainda está hesitante sobre ler ou assistir, te dou aqui um último empurrão para fazê-lo. Não é só mais um romancezinho.

(Gostaria de deixar um agradecimento especial ao Caio e ao Carlos, que levantaram pontos importantes da série comigo e me motivaram a escrever este texto!)