Eu me propus a falar mais sobre livros, filmes e músicas neste espaço. Para obter algum progresso, resolvi me deixar livre para comentar conforme a necessidade. Os posts podem ser curtinhos, bem no modo “comentário breve para não me esquecer”, ou podem render uma reflexão mais demorada. Explico de antemão para evitar expectativas. Ao mesmo tempo, reforço o propósito inicial dos blogs, lá da época em que surgiram – fazer disso aqui um diário virtual onde nos damos liberdade para falar sobre o que der na telha e conforme nossa necessidade. Vamos lá?

Todo o charme do cinema francês
É controverso amar o cinema francês. De minha parte, sempre tive um interesse. É um jeito peculiar de filmar e contar histórias. Impossível ignorar também o legado das produções francesas para a sétima arte. Eles merecem certas honrarias, é fato. Na minha fase mais pretensiosa da adolescência rasgava elogios e declarava meu amor pela Nouvelle Vague aos quatro ventos, enchia a boca para falar sobre as nuances percebidas em cada título de Godard que havia conferido. Este interesse inicial evoluiu para um olhar mais atento a cada nova obra francesa em cartaz. As produções da França acabavam me sendo atribuídas quando escrevia críticas, e, naquela ocasião, acabei assistindo muitas comédias. O humor francês é um tanto peculiar, e me intrigava o quanto boa parte das comédias não eram nada engraçadas.
Fui entender melhor essa pegada depois de conviver de perto com os franceses. Quando me mudei para Montbéliard, na França, já tinha minhas preferências cinematográficas definidas e minha curiosidade só cresceu com o tempo. Segui assistindo de um tudo, mas notei que me faltavam algumas referências. Muito da cultura francesa deriva de filmes clássicos para eles. Assim como nós temos nossas piadas internas e expressões que derivam de títulos da Sessão da Tarde. Para preencher essa lacuna e sabendo que meu parceiro gosta de rever filmes, pedi a ele que me apresentasse alguns destes clássicos. Ri sem respeito algum de Le Dîner des Cons, de Francis Veber, e de La Cité de la Peur, de Alain Berbérian. O terceiro da fila, Le père Noel est une Ordure, de Jean-Maarie Poiré, chegou com menos força e me deixou com sentimentos confusos.
Sucesso absoluto na tradução do título
Conforme mencionei, o humor francês é peculiar. Le Dîner des Cons e La Cité de la Peur são cheios de sacadas geniais, mas possuem enredos toscos de propósito. As situações são ridículas e absurdas, mas coerentes com a zona a que se propõem. Le père Noel est une Ordure começa na mesma linha e tinha tudo para me fazer chorar de rir como os outros dois, mas acabou me incomodando com algumas questões. O protagonista se veste de Papai Noel para distribuir panfletos em uma região bem movimentada de Paris, e acaba mantendo o traje em todas as sequências. Como o título indica, é um picareta, e isso é posto em evidência ao longo do narrativa. Ele vai crescendo em picaretismo. E por isso a tradução do título em português tem uma sacada genial. Se traduzirmos ao pé da letra, o título seria “O Papai Noel é um Lixo”. Não deixa de ser verdade, mas a versão brasileira é mil vezes mais coerente com a proposta.
Pois falemos sobre o longa
O longa é politicamente incorreto e narra uma sequência de absurdos. Félix, o tal Papai Noel picareta, fica entre idas e vindas com sua companheira, Josette. Ele usa de suas picaretagens para conseguir comida e algum dinheiro, pois vive em um barraco com seus coelhos (!). Por intermédio de Josette, conhecemos dois funcionários de uma espécie de CVV francês, Thérèse e Pierre. A coordenadora deles, Marie-Ange, desencadeia uma das intrigas principais da trama quando, na véspera do Natal, despede-se de Thérèse e fica presa no elevador ao tentar partir.
O enredo acaba sendo sobre como um contratempo pode puxar outro e criar uma espiral infinita de desgraças. E o cômico dele é ingrato, as falas não perdoam. Perdi a conta do número de vezes em que repeti “eles não vão fazer isso”, e fizeram. Em uma das passagens Pierre “defende” Thérèse dizendo que ela não é feia, só possui um físico difícil. Essa citação diz muito sobre o tom do filme.
O meu incômodo veio na personagem de Zadko, julgado sem respeito algum. Tirar sarro do sotaque, mesmo? Idem para Katia, um retrato extremamente homofóbico de uma mulher trans. A proposta, como o próprio título anuncia, é abusar do humor negro e colocar em evidência o quão absurdo (e podre, diga-se de passagem) o ser humano pode ser. Daí vejo o ano de lançamento: 1982. Posto o contexto do período fica mais fácil abstrair alguns aspectos. Soa até ousado para o período, dado o teor das piadas. Também levo em consideração o fato de ser uma releitura de peça de teatro. Não deixa de ser uma adaptação bem sucedida se levarmos em consideração que nem sempre é fácil transport a linguagem teatral para a sétima arte.
Gostei com ressalvas. Me fez rir e me deixou nostálgica dos primeiros dias morando na França, quando ainda me chocada com alguns absurdos da cultura local. Se você tem curiosidade em conhecer mais sobre a base da comédia no cinema francês, pode ser uma boa pedida.
Nota: 5/10