Corona Diaries #12 – Experimentando olhares, reinventando saídas

De Edward Hopper

Como transformar o ordinário de dias tão similares em algo extraordinário? Gradualmente o movimento volta ao normal. Ou novo normal, para quem é deste time. Os bares, cafés e restaurantes agora podem acolher o público sem exigir reserva prévia, tanto no terraço quanto do lado de dentro. Os cinemas e museus abriram as portas, espero sujar o novo par de Vans em veludo verde em algum momento desta semana. Ainda tenho percepções desconfortáveis dos arredores. 

Um pouco como animais que se camuflam para se proteger de predadores e deixam só as pálpebras se moverem em ritmo lento, discreto. Um olhar aterrorizado e todavia atento, à espera de algum sinal que passe segurança para dar um passo adiante.

Faço meus desbravamentos de pouco em pouco acanhada, e noto o quanto meus devaneios já não se vestem da mesma forma. Eles perderam o traquejo social, desacostumaram a xeretar a vida alheia e perder horas configurando insanos cenários. Uma hora há de voltar, os músculos foram postos a jogo e apesar da preguiça e do mau jeito vão reaprender a se mover sem tantas amarras.

Ficar enclausurada me fez abrir os olhos para o lado de dentro e criar outro entendimento da base. As incursões ao mundo exterior também foram capturadas, cada uma à sua maneira, para serem degustadas aos poucos no conforto do meu endereço. Hoje mesmo, enquanto girava a maçaneta da porta ao voltar do supermercado, percebi a borracha da campainha desgastada e questionei quantas vezes ela foi pressionada, com que urgência, se foi por carta ou por visita. 

Desde a mudança, virou um portal de inúmeras encomendas, diversos mimos para deixar tudo com nosso toque, e umas tantas inutilidades, pois nossas fugas também ocupam o espaço de um carrinho virtual. Com muita alegria, por conseguinte, me alegrei ao ouvir a caixa de cartas devorar o envelope cujo remetente era Prefeitura – meu convite formal para tomar vacina contra COVID-19. 

Fico tal qual Matilde Campilho escreveu um dia, metade folia, metade desespero. Saber o quanto minha vez na fila estava próxima foi fonte da mais gostosa euforia. E no entanto me atropelo em angústias e despreparo, poisme parece uma possibilidade remota pensar num futuro próximo e esboçar quaisquer planos concretos.

Até lá, vou ceder mais brechas ao meu eu expectador. Deixar ver, montar quebra-cabeças e fazer misturas de dar orgulho a qualquer surrealista. 

Permitir ao mundo que venha até mim. Recuso-me a ir em sua direção, a engajar riscos. 

De mim não parte. Quero sentir como vai se achegar, de que forma vamos combinar nossos passos de dança contemporânea para dar tom extraordinário ao já nem tão ordinário assim.

Corona Diaries #11

A arte é de Brit K Caley e você pode encomendar um print dela aqui.


A neblina me roubou toda a inspiração e está pronta a tomar conta de tudo nesta manhã. Do meu terraço é como se o New Babylon nem existisse. Uma parte dos prédios que consigo avistar do janelão de casa também sumiu de vista. O inverno começa oficialmente na última metade de dezembro, mas o fim de novembro já anuncia o que nos aguarda para a nova estação. A diferença de duas semanas para cá é significativa. Vez ou outra saio para caminhar (às vezes corro) pouco depois de acordar e minhas roupas tem parecido leves demais para aguentar a garoa fina dessas manhãs que despertam cada vez mais preguiçosas. Vai começar a temporada dos prints de temperaturas negativas ou bem próximas de zero. Cresci em um lugar quente demais para não me impressionar e printar temperaturas que eu jamais sentiria na pele caso tivesse continuado por lá. Muita gente faz igual, é aquela coisa: a gente pega o tal título de expatriado e depois de anos corridos ainda nos impressionamos com coisas ditas banais.

As temperaturas caem e o sol também não está muito aí para os mortais. Por volta das 17h o céu já está tomado pela escuridão. O boato da depressão invernal é real. A ausência de sol deprime e nos deixa enlouquecidos com qualquer oferta de dias sem nuvens carregadas no céu. No último sábado pedalamos até Scheveningen, o bairro da praia principal de Haia, que também abriga um parque enorme cheio de dunas. Queríamos buscar um pouco de vitamina D naquela tarde ensolarada. Não vou afirmar que foi o suficiente, pois estava frio demais para perdermos a noção do tempo caminhando. Mas foi um passeio gostoso, deu até para tirar o pó das nossas câmeras analógicas e nos encheu de esperança por dias menos chuvosos. Sonhamos pouco, pois a semana já começou virada no jiraia com pancadas de chuva.

(Eu disse, o dia estava lindo)

Do último Corona Diaries, datado do início de julho, pra cá, muita água rolou. Os holandeses caíram nos encantos do verão e fecharam os olhos para o vírus. Como se o Covid tivesse tirado férias. O número de infectados voltou a subir em meados de setembro e o governo precisou fazer alguma coisa. Tudo foi fechando aos poucos. No momento os restaurantes e bares estão fechados e temos um punhado de restrições a seguir como em outros tantos lugares do globo. Nós encaixamos uma mudança de apartamento neste segundo lockdown, e cá estamos vivendo as dores e delícias de buscar e comprar móveis e ver nossa morada atual ser tomada por caixas. Entre atos Nico e eu saímos no meio da tarde para andar um pouquinho quando a chuva da trégua. Durante uma de nossas caminhadas descobrimos a Free Beer Co., uma portinha entre a Prinsestraat e a Molenstraat onde dois canadenses bons de papo vendem cervejas.

Eles propõem um serviço de assinatura muito bem quisto sobretudo por quem aumentou o consumo de bebidas alcólicas nesta pandemia. Você paga 10 euros para entrar no clube do garrafão de 2 litros e 7 euros para o clube de 1 litro. Feito isso, você pode repor o conteúdo pagando 10 euros por litro. A ideia é motivar os assinantes a descobrirem diferentes tipos de cerveja a cada semana. Eles possuem três torneiras que são trocadas religiosamente uma vez por semana. Um valor honesto para se embebedar com essa curadoria maravilhosa de brejas. Para completar a dupla é ótima de vendas, então eles sempre acabam nos empurrando uma ou outra cerveja extra – pois sim, eles possuem uma seleção à parte de cervejas em lata e garrafa. A parte boa é que eles já eram uma loja “à prova de corona” – com o perdão do trocadilho barato com a marca de cerveja – visto que o local é fechado e o único contato que os clientes possuem é pelo balcão. No fundo da minha nostalgia ele me lembrou o The little coffee shop, lá no bairro de Pinheiros, em São Paulo, que também funciona neste esquema de ter apenas um balcão para servir quem está passando pela esquina da Rua Lisboa com a Artur de Azevedo. Deu saudade de quando trabalhava na mesma quadra do café e podia compartilhar um espresso ou um coado com as minhas amigas de trabalho depois do almoço. A pandemia e o desemprego mexem tanto com o meu emocional que já me peguei chorando ao me lembrar de quanta coisa legal vivi durante meus últimos meses empregada no Brasil.

Agora me encontro aqui, ainda transbordando desesperança, e fechando uma mala com minhas roupas de verão. É curioso esse processo de fechar ciclos e a forma como reagimos a ele. Cheguei em Haia no segundo dia de Dezembro de 2019 e agora, um ano depois, faço as malas outra vez rumo a um novo capítulo da minha vida na Holanda. Por vezes pergunto se minha existência por aqui começou de verdade ou se segue no limbo. Quando se dá o processo de criar raízes em um lugar? A partir de quando sentimos segurança para chamar um lugar de lar? A pandemia colocou todos os processo clássicos de adaptação em suspenso. Vivo um paradoxo constante onde oscilo entre a sensação de que acumulei diversas vivências ao longo do ano e a impressão de que nada aconteceu. Depois de passar 2020 flutuando em tantos nadas, resolvi tirar um tempo para transformar minha jornada de auto-conhecimento em um projeto. O tal emprego de project manager não aparece, então tenho visto o que posso fazer para dar criar este trabalho em um nível pessoal.

Visto que preciso esvaziar os armários e gavetas para encaixotar o que levarei para a casa nova, resolvi fazer uma triagem e rever alguns projetos pessoais. Poderia ter feito isso antes, eu sei, mas minha ambição esqueceu de fazer o plano de emergência para um ano inteiro sem emprego. Mas bem como diz o poeta, o tarde demais não existe. E se teve algo que a pandemia fez por mim foi me empurrar para dentro e me ajudar a encontrar pistas valiosas sobre o caminho para sair mais forte depois de um longo período de embate pessoal. Não sei você, mas eu estou bem curiosa para conhecer os caminhos que 2021 pretende me apresentar.

Corona diaries #10

Quando fiz o primeiro ‘Corona diaries’ tinha como objetivo registrar como seria minha experiência com o confinamento. Parecia uma tentativa de provar para mim mesma que muito poderia acontecer mesmo sem colocar os pés para fora de casa. Não deixava de ser uma boa ocasião para sentar aqui e escrever um monte de reflexões sem nexo sobre o estar em casa e as tantas abobrinhas que brotaram na minha cabeça desde então. Daí recebi a última news da Luísa e ela me fez viajar no tempo e revisitar este longíquo passado de blogs criados antes de 2008. Me falha a memória e não consigo precisar o ano, mas minha primeira aventura online foi dividida entre blogspost e livejournal (!). Era um diário online. Dei toda uma volta ao longo dos anos para cair novamente no ponto zero que me trouxe ao universo blogueiro. Cada texto era um grande resumo do que havia feito no dia e, quando estava inspirada, rolava uma reflexão sobre algo do meu cotidiano. Essa coisa de fazer post com Top 5, resenha literária, dica de projetos e afins viria bem mais tarde, quando de fato passei a ter contato com outras blogueiras e tentei me adequar ao formato de boa parte dos blogs daquela época.

E o que é o Corona Diaries senão o meu meu jeitinho de blogar antigamente? Atribuí um nome como se estivesse produzindo muito conteúdo nesta página e precisasse diferenciá-lo de outros possíveis temas, comecei empolgada e fui espaçando cada vez mais as publicações. Como todo projeto que alimentou minha alma no início e foi perdendo o brilho paulatinamente até ser deixado de lado por n motivos. Toda essa lenga-lenga não passa de um disclaimer para anunciar a continuidade do Corona Diaries. Desconheço o amanhã, vai que um dia resolvo dar um tapa neste site e falar de outras coisas? Ao menos vai ficar guardado na categoria dele. E vai continuar com o Corona no nome pois, embora a Holanda já tenha desconfinado, o vírus segue fazendo vítimas e ainda não existe uma vacina.

Fecha parênteses.

Nestes quase dois meses desde o último post presenciei o desconfinamento em duas fases da Holanda. A situação por aqui passou longe do que se passou na Itália, Espanha e França, por exemplo. O governo anunciou recomendações a serem seguidas, fechou o comércio, pediu às empresas que fizessem o possível para que os funcionários trabalhassem de casa. Não vou entrar em detalhes pois não é o foco do diário, mas foi um confinamento brando. Conforme relaxaram as medidas, também retomamos algumas atividades que foram suspendidas lá no comecinho de março. Encontramos amigos (sem beijo no rosto nem aperto de mão) e visitamos alguns museus, fomos a um restaurante. Ia dizer que a vida está voltando ao normal, porém vejamos, está daquele jeito. Será que o dito normal como conhecemos voltará a ser algo tangível? Duvido muito. Independente das mudanças e da forma como as coisas funcionarão daqui pra frente, minha desordem interna ainda é a mesma. Ela teve seus momentos entre altos e baixos, é claro. A vida sempre foi assim, mas sinto que a quarentena só colocou em evidência. É como encarar o espelho – há dias em que vejo no reflexo a mulher mais linda do mundo e me impressiono em enxergar tanta beleza apesar de; há dias em que vejo minha imagem refletida e me pergunto como consegui me destruir tanto em tão pouco tempo. Vivo nesta montanha-russa que consiste em não ter tempo de curtir a adrenalina pois a viagem é rápida e sobra pouco tempo para apreciar as variações.

O verão chegou com tudo e meu corpo reage mal ao calor. A pressão cai, quando transpiro muito meu corpo coça (e dói pra uma porra), quando não chove fica seco demais para meu sistema respiratório e a rinite ataca no capricho. Pode-se dizer que o cenário tampouco tem ajudado a me sentir minimamente bem. A vantagem de viver em um país bipolar com relação ao tempo é que já está fresquinho outra vez. Me pareceu um absurdo sofrer com 31 graus depois de uma vida numa cidade onde 36/38 graus eram uma constante, mas aconteceu. Depois do extremo mormaço veio a tempestade, as temperaturas caíram e até deu para dormir sem sentir meu corpo pregando outra vez. Vitória.

Sigo em vida me agarrando à singela expectativa de dias menos tempestuosos na minha mente. A gente vai seguir se estapeando até ela me dar sossego, eu sei, mas não é que este negócio de fazer descargas mentais por aqui ajuda?

Corona diaries #9


[Aquarela feita pelo meu amigo Caio Naressi. Ele diz que pensou em mim enquanto pintava ao som do álbum Power, corruption and lies, do New Order, em algum momento de Novembro de 2019
]

Queria escrever alguma coisa antes de completar 29 anos. Não que não o tenha feito entre um bullet journal, uma carta de motivação e umas anotações soltas online, mas queria um Corona Diaries de prefácio para o meu réveillon. Já faz mais de uma década que aprendi a conjugar o verbo se réveiller (em tradução livre: despertar). Réveillon, que nós associamos à virada do ano no Brasil, é a primeira pessoa do plural na conjugação. Quando começava a estudar francês e descobri o significado deste verbo achei bonito o conceito de ‘despertar’ como rito de passagem. Desde então adotei à minha humilde realidade. Gosto da sensação de fazer planos e me encher de perspectivas para o ano que está por vir pela perspectiva da minha data de nascimento. É até um pouco doido falar sobre a intensidade com que experimento um sentimento de renovação a cada quatorze de maio.

Aniversariar sempre foi algo muito íntimo para mim, decorrência provável deste ato simbólico de transição. Preparar-se para um novo ano e se despedir do ano que passou demanda entrega, vasculhar as memórias, analisar o que está encaminhado, checar o que precisa ficar para trás, ver o que pretendemos levar adiante, pensar nos possíveis planos futuro. Convenhamos, é um trabalho custoso. Toma tempo e exige um pouco de concentração. E bem, é minha vida, essa transição depende exclusivamente de mim. Por isso sempre gostei do toque de recolher, de voltar para minha concha e fazer todo este trabalho reflexivo no conforto dos meus pensamentos. Tive contudo meus momentos de variação. Em dados períodos senti vontade de ser lembrada, fiquei animada para comemorar, fiz festinhas, me presenteei. Nunca fui muito chegada a narrativas lineares e deixei essas manifestações falarem por si quando aconteceram.

No início do ano mudei de país e, desempregada, já sabia que não poderia ver meus pais no primeiro semestre e que não poderia trazer meus amigos mais queridos para a Holanda. Ou seja, não teria quórum suficiente para uma festa. Então veio o corona e a certeza de que seria inviável reunir as oito pessoas que conheço no país e que poderiam eventualmente se deslocar até onde moro. Todos os caminhos me levaram de volta à introspecção em 2020. Porém neste processo de contar os dias sem saber quantos dias faltam também perdi toda e qualquer noção de tempo. Um dia fui dormir e quando acordei já era 13 de maio, um dia antes do meu aniversário. Foi no susto.

Desde a última cartinha tentei ter mais cuidado comigo e conversei cada vez menos com as pessoas. Precisava de um tempo em silêncio. Foi preciso lidar com muito barulho aqui dentro, comprar algumas brigas comigo mesma, repensar todas as lições pelas quais passei desde Maio de 2019. Em alguns momentos doeu muito, em outros chorei de alegria, como diria Roberto Carlos, se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi. E bota emoção nisso! Depois de meses difíceis em Annecy tenho aprendido a me afirmar e me posicionar. Eu achava que sabia, e talvez até soubesse, mas desaprendi, desandei, e agora tenho tentado reorganizar essas pecinhas confusas que me compõem. Comemorei um ano de um dos encontros mais bonitos da minha vida, começamos uma série nova entre tantas que vimos na quarentena, desabei a chorar depois de uma chamada de vídeo com a minha mãe, comecei a anotar frases que ouvi em Rupaul’s Drag Race e que viraram pauta para minhas sessões de psicanálise. Também li os drops diários para salvar o minuto, me senti abraçada e tive ainda mais certeza do que desejo para os 29 anos: afeto e leveza. Afeto para apaziguar momentos complexos, leveza para encará-los.

Hoje cedo resolvi colocar minha playlist de músicas mais ouvidas em 2016 (!) e esbarrei em Colors, de Halsey, no meio da seleção. Senti tanto quando ela disse you’re ripped at every edge but you’re a masterpiece. Escolhi como mantra do meu ‘despertar’ dos 28 para os 29. Vou abraçar minha idade nova mentalizando que nunca serei definida pelo meu corpo e nem pelo meu trabalho. Tenho mil motivos para ter orgulho das minhas cicatrizes e tirar o melhor de todo meu aprendizado e conquistas ao longo destes (quase!) 29 anos.

A gente se irrita tanto com bobagens quando só precisa de um pouco de sossego e afeto. Vinha me sentindo despedaçada desde o início do confinamento por uns tantos motivos (muito bem mencionados no último diário), mas de tanto ouvir meu companheiro comecei a abrir meus olhos. Dei início a todo um processo para me reconquistar e parar de esquentar a cabeça com assuntos que nem deveriam mais ser colocados em pauta na minha vida.

De pouquinho em pouquinho retomo a capacidade de me sentir como uma obra prima. Tudo em sem tempo.

Corona diaries #8

People like us get so heavy and so lost sometimes
So lost and so heavy that the bottom is the only place we can find
You get dragged down, down to the same spot enough times in a row
The bottom begins to feel like the only safe place that you know


Nossa trajetória de viver três meses em um começou no aeroporto de Genebra, na Suíça, e como todo começo de história pós-apocalíptica as coisas já começaram ruins. Saímos de um pequeno paraíso em Champéry para cinco longas horas de espera pela partida do nosso voo de volta para casa. Enquanto remonto as memórias sinto a nossa confusão como se fosse hoje: estávamos ambos desajeitados e em busca de compreensão de um mínimo aspecto do que estava por vir. Enquanto ele se ocupava com questões do trabalho, vi o link do perfil de Fiona Apple na New Yorker (ele foi mencionado em um dos primeiros diários) e decidi que aquela seria minha companhia para o nosso chá de aeroporto. Tomei todo tempo necessário à leitura e passei quase toda a espera concentrada nesta longa conversa de Apple com Nussbaum. Fetch the bolt cutters foi lançado há duas semanas (!). O que poderia ser mais simbólico do que este disco sendo lançado e coroando nosso aniversário de um mês de confinamento?

Não dei continuidade ao Corona Diaries pois, como tantas pessoas, me perdi. Em meio a tantas notícias ruins, perspectivas lamentáveis e muito pessimismo, afundar me pareceu excelente como opção. É tanto esforço para ser forte, resistir e dar conta do pouco que preciso dar conta que deixei meu corpo amolecer e me entreguei. Chega de oferecer resistência. Deixei todo o peso recair sobre o meu corpo, alimentei minha raiva enquanto me informava sobre o Corona – e em particular sobre o que se passa no Brasil – vi minha imagem no espelho e chorei muito por detestar (ainda mais) minha imagem, procrastinei, vi muitos vídeos inúteis no Youtube, senti nojo do meu corpo, enalteci meus defeitos, me desprezei o quanto pude. ‘Cause I fuck with myself more than anybody else. Tudo isso na minha cabeça. Instaurei o caos e deixei assim porque ainda não me sentia pronta para fazer uma faxina.

Ainda não me sinto, por sinal.

O confinamento potencializou dois conflitos que negligenciei no último ano: meu corpo físico e meu futuro profissional. Graças à psicanálise me resolvi muito bem com meu físico e sempre tive uma relação saudável e respeitosa com ele. Até tive minha fase louca das corridas e me acalmei depois de ter uma lesão, mas isso é assunto para outro momento. Mas desde 2015 consegui, na medida do possível, viver de forma saudável. Sou taurina, comer é de longe uma das minhas atividades favoritas, então me privar nunca foi uma opção. Até o início do ano passado não tive episódios compulsivos, comia e bebia o que tinha vontade. A atividade física seguiu presente e era o que ajudava a equilibrar eventuais ‘exageros’ – embora não fosse intencional. Nunca fiz exercício para emagrecer. Minha família tem histórico de colesterol alto e diabetes e bom, sigo a mesma tendência. Manter o corpo em movimento é essencial para me manter saudável. Porém a mudança para Annecy e a transição de carreira foram amargas. A gente nunca está pronto pra nada nesta vida (embora pense que sim), mas foi um pouco mais difícil do que eu esperava. Por questões financeiras e por morar longe de tudo, ir à academia deixou de ser uma opção. Parei de me exercitar em fevereiro do ano passado e nunca mais retomei. Tentei preencher meus vazios com comida e bebida e tive, enfim, uns tantos episódios compulsivos.

Hoje, pouco mais de um ano depois, estou com 13 kg a mais e com terríveis dificuldades em me aceitar desta forma. É difícil falar sobre o assunto pois é deveras pessoal e corro o risco de decepcionar pessoas com problemas sérios de saúde ou com distúrbios de imagem. Nunca tive um ganho de peso tão significativo e como todo evento novo em nossas vidas tenho apanhado para tratar a questão. Fico nesta corda bamba entre trabalhar a aceitação ou começar a tomar medidas para contornar essa situação e voltar (de forma saudável) ao meu peso de antes. Quando penso no que implica mandar fora 13 kg me dá desespero, porque para fazê-lo da melhor forma é preciso tempo E muita paciência. Com a cabeça pilhada do jeito que está – digamos que as coisas não melhoraram muito do ano passado pra cá – e no meio de uma pandemia, como poderia pensar em regime e em me exercitar? Tenho um companheiro que me apoia nas minhas escolhas e nunca ma encheu o saco com relação a corpo e/ou alimentação, mas que também tem sofrido os efeitos do confinamento, que cedo ou tarde acabam afetando todo mundo, então impor uma dieta nos deixaria ainda mais nervosos e esgotados mentalmente. Minha alternativa, por ora, é arriscar alguns exercícios em casa. Como o vizinho reclamou dos abalos sísmicos provocados pelos meus polichinelos (gostaria muito de estar exagerando), encontrei alternativas em treinos apartment friendly da MadFit. Estou sem objetivos no momento, não tomei decisões concretas, mas mexer o corpo ajuda a aliviar o stress e já me sinto menos cansada quando preciso subir as escadas de casa ou pegar a bicicleta para ir ao mercado. Já é alguma coisa.

Foi também na tentativa de me tranquilizar que me desesperei (!!!) mais uma vez quando voltei a pensar sobre minha transição de carreira. O peso do meu corpo causa desconforto, o das minhas escolhas o sobrecarrega e tenho cada vez mais dificuldades em caminhar equilibrando tanto peso. Depois de 7 anos trabalhando como assessora de imprensa (e fazendo uns freelas de redação) fiz um mestrado em produtos e serviços multimídia, trabalhei um ano inteiro como gerente de projeto digital e gostaria de continuar atuando na área. Mas entendo bem a demanda de experiência para o cargo e não tenho o suficiente. Perdi as estribeiras procurando vagas de assistente que não exigissem fluência em holandês, mas as buscas foram infrutíferas. Em diversas ocasiões me candidatei mesmo assim pois sou grande adepta do “não custa tentar”, mas depois de tomar tantos nãos na cara deixei a frustração falar mais alto e tenho sentido cada vez mais vontade de abrir mão e tentar outra coisa. Não houve uma única vez em que ultrapassei a etapa do envio de CV. Não é como se eu tivesse passado por diversas entrevistas sem sucesso – eu nem chego a ser entrevistada. Como manter o estímulo para continuar tentando quando todas as reações são negativas?

No meio da quarentena me vi obrigada a me revisitar e questionar minha trajetória profissional de forma mais rígida. Confesso, doeu. Tenho um currículo ótimo, sinto orgulho de tudo o que fiz até agora e sei que dei o melhor de mim. Só que perante tantos nãos me vi feito um bicho acanhado tremendo de medo. É como se piscasse e me esquecesse de todos bons feitos. As falhas pipocam e preciso fazer uma força monstruosa para dar voz com segurança às minhas qualidades. Por um momento cogitei perguntar qual é a minha maior qualidade aos amigos mais próximos, ou que me dissessem algo que fiz e que os marcou positivamente. Partindo do que os mais querido veem de bom em mim, montaria uma espécie mapa que me ajudaria a explorar cada uma dessas características para me encontrar nelas. Mas me pareceu o cúmulo da carência e no fim das contas é uma tarefa que não pode ser delegada. Depende de mim. Sendo assim, meu presente de aniversário (daqui duas semanas!) vai ser este mapeamento. Tomei nota de algumas pistas que encontrei no meio do caminho destes últimos dias. Vou fazer umas colagens, voltei ao meu bullet journal, e espero ter uma luz a partir de tudo isso para refazer um bom CV e uma boa carta de motivação. E não menos importante, encontrar vagas mais adequadas ao meu perfil. O plano de ser gerente de projeto digital vai ficar para mais tarde.

É difícil descrever o nível de exaustão psicológica em que me encontro e percorri um longo caminho até voltar para este espaço e conseguir escrever com leveza. Seguindo a ordem caótica do mundo, mesmo sem sair de casa muita coisa aconteceu. Os pontos altos do último dia foram Fetch the bolt cutters, a volta da newsletter (repaginada!) de uma amiga muito querida, Sherlock (ainda não havia dado uma chance à série), Rupaul’s Drag Race (cuidado com os spoilers, estamos assistindo as temporadas antigas) e Deerskin. Ainda estou com dificuldades para ver filmes em casa. Me perco com as minhas listas, com dicas de amigos e tentando organizar as atividades do dia para tirar um momento e me concentrar em um filme. Quem sabe uma hora vai?

Quero ver como as coisas vão evoluir agora que aceitei os sentimentos ruins. Deixar sair faz parte do processo de cura. Pode até ser que nasça algo destes tantos cafés que tenho compartilhado com meus demônios pessoais. Vez ou outra cogito produzir outros tipos de conteúdo aqui no blog, de repente falar sobre coisas legais que li e vi neste meio tempo. Por enquanto vou me contentar em chegar ao fim do dia com algum pingo de sanidade. Nos vemos em breve. 🙂

[o trecho que abre este texto é de Heavy Balloon, de Fiona Apple]