Como não ser atropelada a cada esquina

ou ‘os cinco maiores clichês da Holanda’

Den Haag (a cidade onde moro) em uma manhã de inverno

Sou uma pessoa que carece de concentração nas primeiras horas do dia. Até consigo fazer um milhão de coisas, mas é tudo executado no modo automático, não penso, tampouco raciocino ou produzo efeito sobre minhas atividades. Isso tem um total zero de impacto na vida de uma pessoa desempregada e ainda em vida no meio de uma pandemia. Estou presa em casa, o pior que pode acontecer é deixar algo cair no chão ou esquecer a roupa recém-lavada dentro da máquina por algumas horas. Porém Outubro chegou, o mundo segue em desordem e não vou mais viajar, tampouco sair do país pelos próximos três meses, achei por bem me inscrever em uma academia pois ando insatisfeita com a minha forma física. Nessa vida me falta cada vez mais estímulo, sabe como é, essa vontade de existir que anda definhando mais e mais. A academia pareceu uma boa solução pra colocar meu corpo em movimento e não deprimir com a chegada do inverno. Se não sair de casa nas tais primeiras horas do dia sei que vou procrastinar até o fim dos tempos e terminar jogando a mensalidade no lixo. Enfim. Foi numa dessas que, munida de toda desconcentração do mundo, coloquei um podcast pra tocar e parti rumo aos meus 15 minutos de caminhada até a tal da academia, para quase morrer atropelada durante 5 segundos de distração. Porque na Holanda você pode estar parado, olhar para sua esquerda, direita, suas costas, o céu e adiante, e ainda assim ser atropelado por uma bicicleta, um carro, um ônibus, ou até mesmo por um outro transeunte.

Será que as regras de trânsito daqui são diferentes? Ou só eu que sou tonta demais e não deveria me distrair por um segundo sequer? Fiquei às voltas com esta pergunta em mente, no dia em que tiver um salário vou investir em um curso de atualização das condutas de trânsito para ver se me sinto um pouco mais segura.

Foi durante uma dessas reflexões que veio a vontade de falar sobre os clichês da Holanda pela minha perspectiva. Sem querer cair naquele “clichês que são reais”, mas já caindo, resolvi listar alguns dos lugares comuns que tanto me anunciaram e que foram se confirmando com a passagem dos primeiros meses aqui. Frisando que essas impressões são de uma pessoa que passou a vida toda no Brasil e que, depois de dois anos morando na França, certamente vai fazer algumas comparações inspiradas no que vivi no país das baguettes oui oui oui.

Sim, você pode ser atropelado a qualquer momento.

Passei a vida achando que a calçada era um lugar relativamente seguro para quem precisa parar. Que seja para amarrar o cadarço solto, checar o Google Maps ou mudar de playlist, se você quer parar no meio de uma caminhada, provavelmente vai fazê-lo na calçada. Só que a Holanda é freestyle e o céu é o limite. A cena que descrevi no início deste texto foi real, e o CAMINHÃO que quase me atropelou era de lixo. Porque sim, todo tipo de veículo pode subir na calçada quando você menos espera, todo cuidado é pouco. É difícil me ver saindo de casa sem fones de ouvido, mas desde a mudança pra Holanda foi preciso baixar o volume para ouvir eventuais invasões de calçada. Já teve dia em que fui surpreendida por três caminhões desses gigantes de mudança num curto trajeto de quinze minutos. A rua onde moro é muito estreita, só tem espaço para um carro passar por vez. então quando precisamos descarregar as compras do mercado…subimos gentilmente na calçada. Porque senão os outros carros não conseguem passar. Será que é isso? As limitações físicas das cidades impulsionaram os holandeses a subir nas calçadas quando fosse preciso, sem checar se há um pedestre ou ciclista no caminho? Me parece que achei uma das respostas. Caminhar pelas ruas perdeu todo o tom de flâneur urbana que um dia tive na França, pois nunca é tranquilo. Confesso que vez ou outra me pego contando a quantidade de vezes em que fui surpreendida por carros ou caminhões nas calçadas durante um trajeto.

Tem bicicleta pra mais de metro mesmo

Ainda no tópico atropelamentos, temos aqui a maior provocadora de acidentes de toda natureza: a bicicleta. Ela merece demais o seu lugar nos cartões postais do país. Já que a circulação de carros é um tanto dificultosa, é natural que tenham considerado mais fácil se deslocar de bicicleta. Em termos de manutenção sai muito mais em conta. Até porque ter um carro custa bem caro por aqui. E não há tempo ruim para os holandeses. Eles passam boa parte da vida deles debaixo de chuva, então nada pode abalá-los. Faça chuva ou faça sol, a circulação de bicicletas é sempre intensa. E você vai ver de um tudo. Tem gente que carrega três crianças num carrinho anexo, tem gente que fala ao telefone enquanto carrega a sacola de compras do mercado (PEDALANDO, você não leu errado), tem gente que carrega um móvel desmontado. Aqui é fácil encontrar estacionamentos exclusivos para bicicletas! E você pode ir de uma cidade para a outra pedalando pois existe faixa de pedestre em tudo que é canto mesmo. A Holanda leva essa história de mobilidade urbana muito a sério e eu adoro.

Um sábado ensolarado em Leiden

Eles amam fritura. E pão com granulado de chocolate

Poderia listar inúmeras coisas que adoro por aqui, mas o intuito deste post é falar sobre as peculiaridades, aquelas coisas que me surpreenderam ou me chamaram atenção de alguma forma. Nem tudo são flores, e a Holanda é tipo os Estados Unidos da Europa (roubei esta frase do meu vizinho argentino, obrigada, Alejandro). Para começar, todo mundo fala um inglês tão impecável que por vezes fico confusa quando vejo as placas em holandês. A mentalidade e a cultura americana possuem forte influência, e isso se reflete bastante na alimentação. Holandeses valorizam a pausa para o almoço, mas não gostam de desperdiçar o precioso tempo que possuem. É conhecido que muitos deles comem só um sanduíche ou um pão com pasta de amendoim ao meio-dia. Eles deixam para preparar algo quentinho à noite, na hora do jantar. Bom, eles jantam cedo, por volta das 18h – o que para mim é reflexo da fome provocada pelo almoço simples. É um lance cultural, não quero ser ofensiva com os holandeses, mas vim de um país onde temos o costume de comer bem no almoço. E eu gosto de comer algo que me dê sustança para dar conta do resto do dia. Hábito que levei comigo pra França (só foi preciso reduzir a quantidade).

Mas o lance é: como bons americanos, os holandeses adoram uma fritura. Tudo que eles puderem tacar no óleo, vão tacar. E isso é mágico pra quem curte uma junkie food vez ou outra, não nego. Se alguém me pergunta o que há de comida típica na Holanda, respondo, sem pestanejar, Bitterballen. É basicamente uma bolinha de carne (quer dizer, eu acho que tem carne. Nunca pergunte a um local do que é feito, é um grande mistério, uma lenda do país) frita, servida com mostarda em porções de 6 ou 8 bolinhas. Estrelinha do happy hour e do apéro (aquela saudade de um bom apéro francês). Em qualquer bar e restaurante você pode encontrar uma boa variedade de salgadinhos fritos para petiscar, por sinal. Estamos colados na Bélgica, e a tradição de consumir boas batatas fritas foi apreciada e adotada pelos holandeses.

Agora um lance que ainda não entendi muito bem e tenho dificuldades em aceitar é o Hagelslag. Você entende porquê tenho apanhado tanto para aprender holandês? Este é o lindo nome usado para designar granulado. Os mercados possuem uma prateleira inteira só com variedades de hagelslag. De chocolate ao leite, chocolate branco, colorido, com grãos mais grossos, raspas de chocolate… tirei uma foto para ilustrar. Daí eles pegam uma fatia de pão de fôrma, passam manteiga (pra dar liga), jogam o granulado por cima e mandam pra dentro. Por isso as crianças daqui são tão felizes. É o açúcar no sangue.

Uma prateleira inteira de Hagelslag!

A cerveja no cinema é real

Curiosidade inútil do dia: Quentin Tarantino escreveu boa parte do roteiro de Pulp Fiction em Amsterdam. Ele fez questão de deixar singelas homenagens aos Países Baixos no texto. Durante um dos diálogos entre Vincent (John Travolta) e Jules (Samuel L Jackson), Vincent comenta que em Amsterdam você pode pedir uma cerveja no cinema. E que ela é servida na garrafa mesmo, como em um bar. O barulho da garrafa de Grolsch (pois nem só de Heineken vive este país) abrindo em sequência na sala de cinema é um clássico e foi uma das coisas que mais me marcou quando chegou aqui. Sou rata de cinema, como dá para perceber em uma breve folheada neste blog. No Brasil só as grandes redes servem pipoca, guloseimas e refrigerantes. O mesmo vale pra França, mas muitos dos cinemas ‘de rua’ não servem nenhum tipo de comida. Na Holanda vale tudo em todos os cinemas. Se você estiver tomando um vinho no bar do cinema e sua sessão for começar em 5 minutos, você pode ir ver o seu filme com a tacinha em mãos, sem problemas. Nas minhas muitas idas ao cinema, sobretudo em tempos pré-Covid, nunca vi ninguém derrubar ou quebrar um copo. Galera treinada.

Você pode encontrar sua encomenda na casa do vizinho

Assim como a bike, o serviço dos correios também é freestyle. Foi difícil entender a dinâmica deles quando cheguei por aqui. Assim como na França (e imagino que em muitos países da Europa), você tem uma caixinha de correio na entrada do seu prédio ou na frente da sua casa. O jeito mais fácil de acertar a caixa de correio, caso o número do apartamento não esteja claro, é pelo nome. Quando você faz uma encomenda, caso ela caiba na caixa de correio, eles nem interfonam. Mas se for algo grande ou que demanda assinatura, eles tocam a campainha. Se ninguém estiver em casa – e juro que um dia esse conceito de casa vazia existiu – eles deixam na casa do primeiro vizinho que responder. Já aconteceu de receber encomendas pra gente que nunca vi na vida, já precisei bater na porta de gente que nunca vi na vida para retirar minha encomenda. Altas emoções. No Brasil isso instauraria o caos absoluto, mas aqui funciona bem.

Peço desculpas a você que leu este texto até o fim na expectativa de descobrir como não morrer atropelado, mas a verdade é que eu ainda não descobri. Se alguém tiver um insight, aceito de bom grado. Caso encontre respostas, volto aqui para contar minha experiência. Na real foi só uma desculpa para falar sobre a Holanda e as impressões que tive desde a minha chegada por aqui. Escrever sobre minhas vivências foi ótima, nenhum texto foi escrito tão rápido quanto este nos últimos dois meses. Revisitar esses clichês ajuda a gente a aproveitar melhorar a experiência de um país que não é o teu de origem. E até a rever certos costumes com outros olhos.

Encerro aqui, pois agora é hora de ir fazer minha contagem (quase) diária de veículos que sobem na calçada.