Lidy com isso! #9 – Takeoffs and landings

(Publicado em 19 de Maio de 2017 na plataforma TinyLetter)

Em 28 de abril de 2015 desembarquei em Berlim-Schönefeld. Senti frio, os termômetros marcavam algo em torno de 15 graus e havia uma garoa fina caminhando pelas janelas do aeroporto. Levei um tempo até decifrar as placas, achei graça nas máquinas que vendiam jornais no corredor de saída. Caminhei até o balcão de informações com a minha melhor cara de perdida (e o rosto inchado de quem pouco dormiu), falando metade em francês, metade em inglês, porque a confusão de línguas é sempre pior que o jetlag, e ganhei um mapa com todas as coordenadas para chegar ao hostel. Tinha uma imagem tão errada da Alemanha. Imaginava um pessoal sisudo pra caramba, e nem precisei de muito tempo pra perceber que era o contrário disso: as pessoas sorriam, entendiam minha confusão com as línguas, e tinha esse moço do balcão de informações que traçou toda a minha rota com uma caneta. Faltou desenhar.


Foram sete dias lindos e com tudo acontecendo desta forma. Em 48h eu já conseguia andar sem precisar pedir informações e sem sentir a menor necessidade de ter alguém por perto. Algo muito pequeno quando analisado de fora, mas que virou uma parte significativa da minha história. Nunca me senti tão acolhida enquanto turista, nem senti tanta satisfação em conseguir me deslocar com tamanha facilidade. Sou MUITO perdida, tenho um dom para errar o percurso mesmo depois de uma explicação clara. Mapas são enigmáticos demais (porém tão lindos, não é mesmo?), não tinha 3G, não falava alemão, estava em um hostel (dividindo quarto com uma garota libanesa, um brasileiro e quatro ingleses bem doidos da cabeça), e ainda assim conseguia me sentir em casa. Era como se já tivesse pisado naquele lugar e conhecesse a cidade como ninguém.

Passaram-se dois anos e continuo a falar sobre esta viagem pois ela é tal qual um bom vinho, fica melhor com o tempo. Sempre me ocorre algum tópico decorrente dessa experiência, é mais forte que eu. Ela me ensinou muito sobre desprendimento transitoriedade. Uma lição valorosa que procuro levar para a vida. 

A começar pela parte mais prática e direta: uma mochila emprestada, pouco espaço e pouco tempo. Montei um roteiro meia boca, separei algumas peças de roupas (na certeza que rolaria uma pausa para lavá-las em Berlin – não deu certo, mas viva o início da primavera europeia e seu friozinho característico, reutilizamos a mesma roupa muitas vezes), minha câmera, os documentos todos e, claro, um caderninho. Coisas duradouras estavam fora de cogitação. Tinha tudo meio cronometrado antes do primeiro dia, mas terminei abrindo mão dos roteiros e deixando que a vida me mostrasse os caminhos mais interessantes. Deixei tudo acontecer da forma mais intensa possível, abracei cada cantinho das cidades que visitei, e o mais importante: segui minhas vontades do momento. Dancei conforme a minha música. O simples fato de transitar por cidades até então desconhecidas como parecia certo naquele momento fez com que eu me sentisse minha. Foi um breve teste de amor comigo mesma, uma oportunidade para me (re)conhecer e aproveitar melhor a minha companhia. Tive medo no início, pois temia ser afetada pelo meus diálogos mentais e pelo silêncio de não poder compartilhar nada imediatamente. Nasci nos anos 90 e acompanhei todo o boom da internet, então vocês imaginam: a necessidade de dividir já é grande, e de quebra ainda tenho essa ilusão boba de que posso passar um pouco do que estou sentindo aos outros. Mandava fotos e mensagens quando arranjava um wi-fi porque na minha cabeça os amigos mais chegados ficariam tão felizes quanto eu. 

Este também foi um exercício: entender que tudo bem querer compartilhar. Ser intenso e se emocionar por ver na sua frente um monumento que antes você só conhecia dos livros didáticos é normal, não é problemático. Meus dias viajando sozinha foram o primeiro passo para entender que é horrível reprimir sentimentos por medo de passar vergonha. Ou, pior ainda, por receio de julgamento. Ninguém tem nada com isso, ninguém sabe da sua história para tentar diminuir sua sensibilidade. Ainda briguei muito com isso, porque eu odeio expor qualquer sentimento que remeta à fragilidade, mas vejo que no fim das contas perdi de vez essas amarras. Tá permitido chorar no ônibus, desabafar as dores com as amigas, escrever uma carta à mão para quem você nunca mais vai ver, dar uma latinha de brownie para a autora de um texto que te tirou do buraco em um dia ruim. Hoje consigo olhar para essas coisas e me sentir feliz pela vitória – eu senti. Deixei minha vulnerabilidade à mostra, consegui dizer sem gaguejar e sem cometer nenhum ato falho: eu não posso controlar os meus sentimentos. [A analista ficou orgulhosa demais com esta frase]

Desde muito nova aprendi a negociar o peso das bagagens e a manusear caixas do jeito mais prático. Foram algumas mudanças – definitivas ou temporárias – de cidade (às vezes de país) ou de casa. Com o tempo peguei o jeito. Tomei tanto gosto pela coisa que me tornei uma viciada em painéis luminosos e tickets de avião (ou de qualquer outro meio de transporte). Viajo menos do que gostaria, mudo-me de cidade menos do que gostaria também. Mas cada mudança para mim é sinônimo de liberdade, uma forma de abrir mão de algumas coisas para dar espaço para outras, como de praxe. Fazer um movimento de mudança e desapegar de um bando de coisas para dar conta de carregar as malas sozinha é bem mais fácil com a minha cabeça de hoje. 26 anos parece pouco, mas digamos que errei pelo mundo o suficiente para aliviar toda e qualquer carga desta vida. Tudo é transitório, inclusive os pesos que carregamos.

Às vezes nem somos nós quem partimos. Quando acontece de outras pessoas se deslocarem para além do oceano, o coração protesta. É normal, pois sentimos, e essa vulnerabilidade ante a partida é um dos sentimentos mais bonitos. Mudanças são um amontoado de mixed feelings. Não basta tirar as coisas do armário e remanejar na mala. O deslocamento exige desapego, você precisa jogar algumas coisas fora, escolher o que fica, o que vai na bagagem. As expectativas ficam a dois passos de nos devorar e a vontade de queimar tudo para se ver livre da mudança ganha força. É um processo doloroso, independente da circunstância. Pensem na dimensão do ato: encerrar um ciclo para começar outro do zero, sem ter a menor ideia do que esperar.

Ce qui vieillit un être, vois-tu, ce sont les adieux
[Michel del Castillo – Tanguy]
(O que envelhece um ser, você vê, são as despedidas)

Nos despedimos de pessoas, lugares e situações todos os dias. Nesta viagem fiz exercícios de despedida até apreender o ato por completo. Porque é mais ou menos por aí: a gente aprende a deslizar os pés pelo asfalto como quem se despede. Minhas vivências são efêmeras demais para deixar o apego estragar sua experiência. E é essa rapidez que me dá desespero e me faz agir por impulso – seja com as minhas mudanças ou com a dos outros. Saudade é um pouco como fome, já dizia Clarice, e eu vivo deste regime que paradoxalmente alimenta minha ansiedade. Quando menos espero estou embalando coisas com plástico bolha com o peito carregado. Minhas, dos outros. É aquela dor de tatuagem – o desconforto é quem fala mais alto. Arde, coça, descasca para cicatrizar, mas no fim você encara e, mesmo que haja alguma falha, entende a beleza. Conclusões me deixam feliz de forma genuína. É o alívio de saber que acabou e a partir daquele momento você – ou a outra pessoa – pode recomeçar, mesmo que seguindo caminhos distintos.

De tanto dizer tchau as mudanças viraram uma bagagem de mão. Então nos mudamos. Sabemos das nossas motivações e por vezes é preciso abrir mão de algumas coisas para batalharmos por uma causa maior. Nessas horas a gente fica meio hippie, toma umas doses de otimismo, respira fundo e se lembra do aprendizado da viagem – tudo é transitório.

De coração cheio e com essa percepção encerro um ciclo de sete anos e abandono a profissão que me acompanhou há oito. Dei últimos abraços, deixei ir, chorei ao passar na frente de lugares que marcaram estes últimos anos. Nunca me senti tão intensa, nunca me permiti tanto. E está tudo bem. Envelheci uns tantos anos em cinco meses e nunca foi tão gostoso carregar o mundo nas costas.

É aos tropeços que a gente se encontra no meio da travessia.

“o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”
[Guimarães Rosa]


Links!

  • Eu já falei da Nathalia por aqui, mas é sempre bom repetir – inclusive aos assinantes novos. A Nath manda newsletter toda terça e os textos dela são como um abraço apertado em momentos difíceis. A da semana passada caiu como uma luva e me ajudou em uma situação muito delicada. Por isso tomei a liberdade de chegar na porta da Nath com uma latinha de brownies. Tenho o terrível hábito de dizer obrigada em forma de doces.
  • Os Brownies, aliás, são da Ale. Se você mora em São Paulo, pode encontrá-los no Jardin (ali na General Jardim) e no Coa Café (na Consolação). Deve ter em outros lugares, mas estes dois merecem sua visita para um café acompanhando o brownie. Vocês também podem encomendar direto com a Ale. Recomendo tanto que nem sei ❤ 
  • Como encontrar o meio do caminho – o tema desta mês da Revista Pólen é “Mapas”. Leia o editorial e acompanhe os posts de maio. Tem muita coisa maravilhosa 🙂
  • As Valkírias fizeram aniversário esses dias e eu amo o trabalho dessas meninas. Recomendo entrar na home e ler tudo (bem prática), mas hoje saiu um texto sobre escritoras clássicas. Leia ❤ 
  • Também morro de amores por Matthew Inman e acompanho tudo que ele posta nessa internet doida. You’re not going to believe this é um “artigo” em forma de quadrinho muito necessário em tempos de discurso de ódio e ignorância excessiva. É longo, mas vale demais a leitura. 
  • Ainda nesta linha temos Hate for sale. É um stop-motion sobre este mundo doido odioso no qual vivemos, com um poema de Neil Gaiman (<3) e arte de Anna Eijsbouts.
  • Conheci a newsletter da Anne T. Donahue com a Anna. Ela é incrível (a Anna também), de verdade, mas essa semana foi excepcional. Confesso que me tranquilizou um pouco no meio do desespero com a mudança, de repente funciona para vocês.
  • A Isa é rainha da porra toda. Não é publi e nem digo isso porque é minha amiga, mas eu amo os textos dessa guria desde 2010 e faço questão de indicar pra vocês. Ela está com um 30 antes dos 30 em andamento, vão lá conferir ❤

That’s all, folks!

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